Um amigo, o poeta Celso de Alencar, me lembra que é para lamentar a dupla morte, só esta semana, de Moacyr Scliar e Benedito Nunes, sem contar que em 2010 perdemos, aqui em Sampa, Roberto Piva, Massao Ohno, Wesley Duke Lee: peçamos proteção aos xamãs, invoca ele.
Para mim, a morte do Moacyr foi a que doeu mais. Porque eu sentia intuía, claro que não era o momento dele morrer, quer dizer, Moacyr não precisava morrer agora, ele estava muito bem. Ultimamente nos cruzávamos muito em saguões de hotéis ou aeroportos, indo ou vindo de feiras e bienais do livro – e sempre havia tempo para um café e dois dedos de prosa.
Afinal, ele era da minha geração de escritores (ainda que mais velho) e algo como um vínculo indelével marca as relações de todos nós. Por isso, dá uma dor fininha aqui dentro, de perda irremediável. Prolífico, escreveu dezenas de livros, de forma que sua obra agora é mais um fio que se entrelaça ao padrão do Grande Projeto Poético Brasileiro que, por sua vez, integra o Projeto Poético Universal.
Mas a prova que minha intuição estava certa que não era hora de Scliar morrer está no depoimento de Tânia Faillace, escritora gaúcha e nossa amiga em comum, que reproduzo abaixo:
Ontem (28/2) foi o enterro do Scliar. Teve um AVC hemorrágico porque lhe ministraram um anticoagulante após uma cirurgia banal (grifo meu) Isso está acontecendo muito nos hospitais locais.
Mico, como o chamavam na intimidade, estava a pleno vapor, e em boa forma até o dia infeliz em que entrou num hospital brasileiro, de medicina pós-moderna, isto é, aquela medicina que não enfoca os pacientes de forma personalizada, mas as estatísticas. E a moda. Alguns remédios e tratamentos entram na moda, e todo o mundo recebe sua quota, seja adequada ao caso ou não. Já aconteceu com a cortisona e a amoxilina, agora entram os anticoagulantes (talvez até para hemofílicos, quem sabe) porque é norma que todo idoso tenha doença trombótica. Sei como é, porque estive envolvida com o controle social da Saúde por vários anos.
Conheci o Scliar ainda estudante universitária, com vinte e poucos anos. Participamos da coletânea NOVE DO SUL, em 1962 (ano em que o Moacyr foi orador de turma, como então se usava – os famosos discursos esquerdistas das formaturas na época pré-Golpe).
NOVE DO SUL se tornou um marco histórico na literatura sulina. Todos nós uns pobretões, assalariados ou eventualmente desempregados, assinamos promissórias, pagamos a edição a prestações, e o editor também outro rapaz, chamado Lerner. A coletânea foi resultado de um mutirão, e, embora não contivesse textos excepcionais, informava que, após Erico Veríssimo, outros autores (então jovens) estavam escrevendo.
Da turma dos nove, sobram eu, Ruy Osterman, Carlos Stein, e parece que também o Cândido de Campos, que nunca mais vi. Os demais já se foram: Sérgio Ortiz Porto, Josué Guimarães, Lara de Lemos em 2010, e Sérgio Jockyman e Moacyr Scliar, este ano, com uma diferença de duas ou três semanas.
Jovem, e mesmo mais tarde, o Scliar tinha muita experiência e conhecimento de nossas questões sociais básicas. Porém não era um incendiário na prática, antes um conciliador procurando brechas para agir por dentro do sistema (nas horas vagas de escritor, era médico sanitarista e organizador de serviços e programas de Saúde). Só ia para a cabeça em seus textos – alguns notavelmente densos, proféticos e/ou metafóricos, como a Guerra no Bom Fim, ou o Ciclo das Águas. E, certamente, era também um cético. Cético e estóico ao mesmo tempo, o que, talvez, esteja na base da cultura judaica não-sionista, em que o chamado humor iídiche tem uma excelente função terapêutica e social. Isto é, rindo, dói menos.
Reconheçamos, aliás, que o sonho dos 60 não aconteceu para nós, apesar da Legalidade (O Mês dos Cães Danados). Mais uma vez postergamos a utopia para as calendas. O Império continua aqui dentro. Gostaria de ter conversado disso com o Scliar. Sempre se imagina que ainda haverá tempo.
Agora me ocorreu: em meu último encontro com Scliar, tipo dois anos atrás, no saguão de um hotel na Barra do Rio, ambos falamos de Tânia
Faillace, com ternura e saudades, que precisávamos conversar mais.
Pois é, infelizmente não deu tempo geral. A você, Moacyr, nossa eterna saudade.
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