Márcia Denser*
Uma das reflexões mais consistentes interligando o colapso do neoliberalismo financeiro, a eleição de Barak Obama e a conseqüente “batalha discursiva ideológica” visando a manutenção das políticas econômicas globalizadas surge num artigo do filósofo Slavoj Zizek, publicado originalmente na London Review of Books, em 14 de novembro de 2008.
Segundo Zizek, a razão por que a vitória de Obama gerou tamanho entusiasmo não está apenas em que, contra todas as chances, realmente aconteceu: ela demonstrou a possibilidade de que uma coisa dessas acontecesse. O mesmo vale para todas as rupturas históricas – como a queda do muro de Berlim. Mesmo que soubéssemos da ineficiência corrupta dos regimes comunistas, não acreditávamos realmente que ele iria se desintegrar – como Kissinger, éramos todos vítimas do pragmatismo cínico. A vitória de Obama era claramente previsível duas semanas antes das eleições, mas ainda assim foi vivida como uma surpresa.
Mas a verdadeira batalha, ele argumenta, começa agora, depois da vitória: batalha pelo que essa vitória efetivamente significará, especialmente no contexto de dois eventos nefastos: o 11/9 e o atual derretimento financeiro, como uma instância da história que se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda, como farsa. O discurso do presidente Bush aos norte-americanos depois do 11 de Setembro e do derretimento financeiro soaram como duas versões da mesma fala. Em ambos os momentos, ele evocou a ameaça ao american way of life e a necessidade de resposta rápida e decisiva. Nas duas vezes, solicitou a suspensão parcial dos "valores americanos" (garantias para a liberdade individual, capitalismo de mercado) para salvar esses valores. De onde vem essa similaridade?
A queda do muro de Berlim em 9 de novembro de 1989 marcou o começo dos “felizes anos 90”, pois de acordo com Francis Fukuyama a democracia liberal tinha, em princípio, vencido. A era é geralmente vista como tendo chegado ao fim em 11 de Setembro. Contudo, parece que a utopia teve de morrer duas vezes: o colapso da política neoliberal em 11 de Setembro não afetou a utopia do capitalismo de mercado global, que agora chegou ao fim.
O derretimento financeiro tornou impossível ignorar a irracionalidade gritante do capitalismo global. Na luta contra a AIDS, a fome, a falta de água ou o aquecimento global, reconhecia-se a urgência do problema, mas sempre se adiavam as decisões. A exemplo, a conclusão mais importante do encontro de líderes em Bali para conversar sobre mudança climática foi celebrada como um sucesso: a de que deveriam se encontrar de novo em dois anos para continuar as conversações (?????????).
Porém, com o derretimento financeiro, a urgência foi incondicional; uma soma além da imaginação foi imediatamente encontrada. Salvar espécies em extinção, salvar o planeta do aquecimento global, encontrar uma cura para a AIDS, salvar crianças famintas, tudo isso pode esperar, mas salvar os bancos é um imperativo incondicional que requer se tome providências imediatas. O pânico foi absoluto.
Comparem-se os 700 bilhões de dólares gastos para estabilizar o sistema bancário só pelos EUA, aos 22 bilhões de dólares suplicados às nações ricas para ajudar as pobres a superar sua crise alimentar, dos quais apenas 2,2 bilhões foram concedidos. A culpa pela crise alimentar não pode ser atribuída aos suspeitos usuais de corrupção, ineficiência ou intervencionismo estatal. Até Bill Clinton sabia que “somos todos culpados, inclusive eu”, ao tratar a produção de alimentos como commodities, no lugar de um direito vital dos países pobres.
Países da África e da Ásia foram pressionados a derrubar os subsídios governamentais aos produtores, abrindo o caminho para que as melhores terras fossem usadas no lucrativo plantio para exportação. O resultado desse tipo de “ajuste estrutural” foi a integração da agricultura local na economia global: safras foram exportadas, agricultores foram expulsos de suas terras e levados ao trabalho em condições de escravidão, e os países mais pobres tiveram de importar cada vez mais comida. Dessa maneira, foram postos numa dependência pós-colonial, vulneráveis a flutuações de mercado – preços exorbitantes de grãos (causados em parte pelo uso para os biocombustíveis) têm significado fome nesses países, do Haiti a Etiópia.
Há pelo menos duas coisas a acrescentar aqui. Primeiro, os países desenvolvidos do Ocidente tomaram muito cuidado em manter sua própria auto-suficiência alimentar através do subsídio financeiro aos seus produtores (subsídios agrícolas constituem quase metade de todo o orçamento dos EUA). Segundo, a lista de coisas que “não são commodities como as outras” é muito maior: além dos alimentos, há água, energia, meio-ambiente, cultura, educação, saúde – quem tomará decisões quanto a essas coisas, se elas não podem ser deixadas para o mercado?
Nas últimas semanas tem havido uma extraordinária mobilização da ideologia dominante para combater as ameaças à ordem atual. O economista neoliberal francês Guy Sorman, por exemplo, disse recentemente numa entrevista na Argentina que “a crise será bastante curta”. Ao dizer isso, Sorman está obedecendo à exigência básica no que concerne ao derretimento financeiro: renormalizar a situação. Como ele disse num outro lugar, essa substituição sem fim do velho pelo novo – conduzida pela “inovação tecnológica e pelo empreendedorismo”, eles próprios encorajados pelas “boas políticas econômicas” – trazia prosperidade, mesmo que aqueles deslocados pelo processo cujos empregos se tornaram redundantes possam, compreensivelmente, oferecer-lhe objeção. (Essa renormalização coexiste com seu oposto: o pânico das autoridades em tornar o público pronto a aceitar a solução – obviamente injusta – proposta como inevitável.) Sorman admite que o mercado é cheio de comportamento irracional, mas rapidamente acrescenta que “seria absurdo usar o comportamento econômico para justificar a restauração das excessivas regulações estatais. Afinal de contas, o estado não é mais racional que o indivíduo, e suas ações podem ter conseqüências enormemente destrutivas”.
Raramente a função da ideologia foi descrita em termos tão claros: para defender o sistema existente contra quaisquer críticas sérias, é preciso “legitimá-lo como uma expressão direta da natureza humana”. É improvável que o derretimento financeiro de 2008 funcione como uma bênção aparente, o despertar de um sonho, uma lembrança sóbria de que vivemos na realidade do capitalismo global. Tudo isso depende de como será simbolizado, que interpretação ideológica ou histórica vai se impor e determinar a percepção geral da crise. Quando o curso normal das coisas é traumaticamente interrompido, o campo é aberto para uma competição ideológica “discursiva”. Na Alemanha de fins dos anos 20, Hitler venceu a competição para determinar qual narrativa explicaria as razões da crise na República de Weimar e o modo de sair dela.
Conseqüentemente, para pôr em termos marxistas fora de moda, a tarefa principal para a ideologia dominante na atual crise é impor uma narrativa que não jogará a culpa pelo derretimento no sistema do capitalismo global como tal, mas em seus desvios – regulação frouxa, corrupção das grandes instituições financeiras, etc.
Contra essa tendência, deveria insistir-se na questão-chave: qual “o defeito” do sistema que o torna tão vulnerável à possibilidade dessas crises e colapsos? A primeira coisa a ter em mente aqui é que a origem da crise é “benevolente”: depois da bolha tecnológica de 2001, a decisão nas agendas dos partidos foi a de facilitar o estado real dos investimentos, a fim de manter a economia funcionando e de evitar recessão – o derretimento dos dias atuais é o preço pelo EUA terem evitado uma recessão sete anos atrás.
O perigo é, então, que a narrativa predominante do derretimento não seja uma que nos acorde de um sonho, mas que nos permita continuar sonhando. E é aqui que deveríamos começar a nos preocupar: não apenas com as conseqüências econômicas do derretimento, mas com a óbvia tentação de revigorar a “guerra ao terror” e o intervencionismo norte-americano para que a economia continue funcionando.
Nada foi decidido com a vitória de Obama, mas ela amplia nossa liberdade e, portanto, o objetivo de nossas decisões. Não importa o que aconteça, permanecerá um signo de esperança, na contramão desses tempos de trevas; um signo de que a última palavra não pertence ao cínico realista, seja da direita, seja da esquerda.
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