Marcelo Mirisola *
De todo o lixo que circulou na imprensa desde que Daniel Dantas, Celso Pitta e Naji Nahas foram presos e soltos duas vezes, o que mais me enojou foi o grampo de uma conversa entre o especulador Naji Nahas e um doleiro que intermediava uma “remessa” para determinado cliente. O doleiro queria se ver livre do cliente, e pressionava Nahas.
Em dado momento – vou citar de memória –, o especulador libanês diz para o doleiro enviar logo o dinheiro para “o cara” que “enchia o saco” de ambos.
O “cara” que enchia o saco de Nahas era Celso Pitta, ex-prefeito da maior cidade do país, São Paulo. Em seguida, um Pitta submisso, liga para um Nahas de saco cheio, e agradece o dinheiro que o teria livrado do perrengue em questão: “Obrigado, obrigado, me livrou do sufoco”. Nahas, lacônico, responde com um “então tá, tchau”, e logo desliga o telefone – como se, do outro lado da linha, o interlocutor não fosse o ex-prefeito da cidade de São Paulo, mas um estorvo. Ou pior. Um empregadinho qualquer que lhe tomava o tempo e devia favores. Precioso tempo, diga-se.
E eu, aqui com os meus botões, fico pensando nos milhares de patos que elegeram esse “empregadinho” para prefeito da cidade de São Paulo. Fico pensando que, antes de servir a Nahas, Pitta era o “negrinho” do dr. Paulo Maluf. Será que os “brimos” fizeram uma permuta com um cavalo de raça, e depois dr. Nahas arrependeu-se porque a tinta branca que cobria Pitta dissolveu-se na chuva?
Imagino que todos nós – eleitores que pagamos IPTU e votamos inclusive nos opositores desses senhores (o que dá na mesma) – estamos a serviço de uma engrenagem que só existe para beneficiá-los. O desprezo com que Nahas tratou o ex-prefeito me diminuiu como cidadão. Me senti um “negrinho” do haras do dr. Nahas. Um pangaré usado e castrado, feito o ex-prefeito Celso Pitta. Um escravo do enfado desses sultões, e do desprezo que eles têm por todos aqueles “valores” que nós, ao contrário, sempre fomos obrigados a engolir. Se eles usurpam as leis e a democracia, por que temos que acreditar nisso? Para servi-los? Para elegê-los? Para enriquecê-los?
E esse dr. Luiz Eduardo Greenhalgh? Lembro dele como advogado defensor de presos políticos, lembro dele na porta das fábricas, nas greves de São Bernardo do Campo, no impeachment de Collor, lembro dele chorando quando Lula foi eleito pela primeira vez, e lembro de Greenhalgh vociferando nos corredores do Congresso Nacional, sempre a favor dos fracos e oprimidos. E agora? Vão apertar esse bigodudo ou ele servirá nosso lombo mais uma vez para a montaria dos seus patrões?
A propósito: quem são os outros “negrinhos” do dr. Naji Nahas? E a criação de Daniel Dantas? Quem são os “negrinhos” do dr. Daniel Dantas?
Antes de prosseguir, quero, desde já, apontar minha ingenuidade. O problema todo está nesse “vão apertar”. Vão, quem? “Eles”? Isso pressupõe jogo limpo, dois lados. Nos faz acreditar que não somos pangarés. Nos faz acreditar na divisão dos poderes. Nas leis, no Estado de Direito e na república e no Papai Noel. O Brasil tropicalizou Montesquieu e o transformou num camelô. Chega a ser ridículo escandalizar-se. Chega a ser ridículo acreditar que algo vai mudar. Que “eles” vão dar um jeito. A indignação, em última análise, transfere para a raposa a responsabilidade de cuidar do galinheiro, faz o pasto dos sultões vicejar, nos escraviza. Tudo o que é coletivo é bovino, eqüino. Pitta era o negrinho preferido do plantel do dr. Maluf. Até que dr. Nahas o comprou. Fizeram um negócio. Só isso. Não há motivo para indignação. Um sultão passou a perna no outro, e o prejuízo foi jogado no lombo dos trouxas que pagaram impostos, e votaram neles. A indignação não corresponde aos fatos. A indignação nos uniformiza e nos transforma em negrinhos desses senhores, iguais ao Pitta – nos iludimos achando que temos (e somos) alguma coisa, quando, na verdade, apenas os servimos: somos empregadinhos deles, e o pior de tudo, eles são nossos credores. E cobram juros altíssimos.
Não me venham falar que sou racista, pois também sou – involuntariamente – um negrinho nesse haras Brasil. O ponto de vista não é meu. Se depender desses senhores (de engenho, de usinas, de empreiteiras e construtoras, de bancos, igrejas e grupos de comunicação), enfim, se depender deles, teremos apenas Ivete Sangalo para ouvir, badalhocas para tirar do traseiro, migalhas e impostos para pagar, e nada vai mudar. “Eles” são os amigos e os respectivos “negrinhos” do dr. Nahas e do dr. Dantas, e de uma ou duas dezenas de canalhas que tripudiam da nossa boa vontade. Aí está o erro. Enquanto não separarmos as coisas, não sairemos do pasto.
Reconhecido o erro, prossigo. E mudo de assunto para falar da mesma coisa. Domingo retrasado, dia 20 de julho, o Estadão publicou o depoimento de Warren Zinn, fotógrafo que cobriu as guerras do Afeganistão e do Iraque. Zinn trata do suicídio de Joseph Dwyer, soldado americano que ele, Zinn, celebrizou numa foto antológica. Na foto, Dwyer carrega uma criança iraquiana ferida após um bombardeio de aviões norte-americanos. Três vidas arrasadas: a do fotógrafo que carrega um sentimento de culpa por ter dado notoriedade ao soldado e às “boas intenções” dos EUA no conflito do Iraque, a vida do soldado que não agüentou a pressão do pós-guerra e suicidou-se e, por fim, a vida arrasada da criança – que terá de conviver para sempre com as seqüelas do bombardeio na mente e no próprio corpo.
Pois bem, liguei essa tragédia ao episódio envolvendo Nahas, Pitta, Dantas et caterva. Num primeiro momento, nem eu mesmo entendi a razão da associação. No entanto, a resposta lacônica de Nahas a Pitta me sugeriu uma pista. Tanto faz se a ordem é bombardear uma aldeia iraquiana ou tentar subornar um delegado da Polícia Federal. Tanto faz se Nahas é libanês e Pitta é um negão afro-descendente. O que une os dois episódios é o serviço que as vítimas prestam aos carrascos. E olha que, aqui, nem estou tratando do óbvio, que é pagar impostos e votar neles (depois eu falo), mas falo de dar verossimilhança a essa canalhada, freqüentar o mesmo barbeiro.
Por que oferecer o lombo? Por que reproduzir os hábitos deles? Por que usar de educação e boa vontade com esses canalhas? Foi isso o que Pitta fez ao recorrer a Nahas. E o fez não somente porque estava num perrengue ululante, mas porque – antes de qualquer coisa e desde sempre – freqüentava o mesmo barbeiro dos sultões, submeteu-se à lógica deles. Deu-lhes verossimilhança. Hábeas corpus. E aí Nahas, o sultão, montou em cima, sem esforço: exercitou o mando, o interesse e o desdém e fez executar sua vontade de dono. Suspeito que Bush, Rumsfeld e Dick Cheney devem usar o mesmo tom lacônico de Nahas em seus telefonemas assassinos.
Voltando ao Brasil do Opportunitty. Eu falava de um sadomasoquismo descompassado aqui em nossas plagas. Uma engrenagem que aperta parafusos espanados. Onde somente o sádico tem prazer. Eu achava que não era bem assim que a coisa funcionava. Pelo que depreendi da leitura da obra de Masoch, existiam partes, e um acordo. Mas eu me enganara. Pitta desqualificou o próprio lombo. No Brasil, Montesquieu virou um estelionatário. Sade e Masoch – que afinal tinham uma ética e uma filosofia um tanto enfadonha na putaria que ensejavam, diga-se de passagem – viraram programa familiar antes da pizza de domingo.
O desprezo com que Nahas tratou o ex-prefeito me lembrou que eu fui – e continuo sendo – um trouxa ao ter comparecido às urnas… e isso já faz um bom tempo, desde 1985. Agora, além de negar-lhes verossimilhança, garanto que nunca mais voto na vida.
De volta ao Iraque, onde há 5 mil anos os sumérios começaram toda essa palhaçada.
Os EUA invadiram o Iraque e aniquilaram (e continuam aniquilando) toda uma população de civis que nada tem a ver com as oscilações da bolsa de valores de Nova York. Se há essa conexão, entre a invasão e as oscilações da bolsa, e deve haver, algo está muito podre – e o mínimo que eu tenho a fazer é resistir. Isto é, repudiar essa e todas as outras invasões: em sentido amplo, irrestrito e genérico.
Pois bem, vamos ao repúdio. Que tipo de gente “cuida” do mundo? Eu já perdi a conta das vezes em que um operador desesperado da bolsa de valores (daqui e de alhures) foi manchete nos jornais. A pergunta que me faço é a seguinte: como é que eu posso ser cúmplice, e tomar as dores, e me desesperar e ser solidário, e me condoer da ruína de um mauricinho de merda que opera na bolsa de valores? Isso é que é dar verossimilhança, entendem? Eu não passo nem na porta dos restaurantes que ele freqüenta. Odeio sushi. Sou pedestre desde 1997, e usuário dos transportes coletivos. Não tenho plano de saúde. Só como mulher feia, e sou amigo do Bactéria. E se eu melhorasse de vida… bem, se eu melhorasse de vida, continuaria sendo amigo do Bactéria e – claro – continuaria odiando sushi. Mas, enfim, a questão é a seguinte: o que eu, e os poucos leitores de Cioran, temos a ver com as gravatas italianas que esse babaca usa? Quantas horas Pitta ocupou na televisão, e nos jornais e nas revistas, quando foi prefeito da cidade de São Paulo? Quanto tempo o “negrinho” do dr. Nahas tomou de toda uma população? Para quê? Para mentir, para atender aos interesses dos seus donos?
O que eu quero dizer é que não existe representatividade. Portanto, não é nenhuma insensatez da minha parte desejar a lata do lixo para eles. Ora, se eles ignoram um dos princípios básicos da República, nada mais cívico e republicano do que desprezá-los e, conseqüentemente, anular meu voto. Quero dizer que essa gente é irrelevante, e que as discussões em torno dos interesses deles interessam apenas a eles. Alguma vez eles se ocuparam de Dostoievski? Que afinidade eu tenho com esses seres quiméricos, corruptos? Dentro de poucos anos estarão na lata de lixo da história. Que importância tem dr. Adhemar de Barros no meu dia-a-dia? Eu não posso admitir que os herdeiros desse mesmo “lixão Adhemar”, ou seja, Maluf, Pitta, Marta, Kassab, Alckmin, Aécio e afins, invadam o pouco tempo que tenho nesse mundo.
Tem gente mais relevante na fila. Fernando Collor ou Albert Camus? Alguém dirá: “Mas as decisões deles afetam diretamente sua vida”. Concordo, e digo que sempre afetaram no pior sentido, e que eu nunca tive opção diferente de votar achando que alguma coisa podia melhorar. Só piorou. A indignação do contribuinte, do eleitor, é afrodisíaco e combustível para esses vermes. Tenho nojo dos terninhos vermelhos da Marta Suplicy. E ela tem nojo dos eleitores (basta olhar na cara, ela não consegue disfarçar a aversão, está na cara!), podem crer. Ela, Kassab, Alckmin. Todos eles. Só existe uma coisa mais broxante e irrelevante e falsa do que Alckmin tomando cafezinho na padaria da esquina, trata-se do governador do Rio de Janeiro indignado, depois de mais um vexame, perguntando: “Que lugar é esse?”.
Essa gente trapaceia, frauda, engana, e ocupa tempo e espaço demasiado na vida de quem só se fode por causa deles. A meu ver, eles não passam de lixo de uma breve história que não me diz respeito, não me diz absolutamente nada. A mesma coisa vale para o campeonato brasileiro de futebol, e vale também para os atletas olímpicos (sabiam que a cigarrinha-da-espuma salta 70 vezes o próprio tamanho?). Ah, Deus, a vida é breve e os conflitos matrimoniais de Luciano Huck e Angélica não podem ser mais urgentes do que os livros de Jorge Luis Borges. Meu amigo Evandrinho “Grogotó” Ferreira é quem diz: “Não há fato ou notícia ou personalidade importante que justifique a existência de um periódico: um jornal sério devia circular uma vez a cada século”. E a manchete deste século, aliás, Bin Laden já deu. O resto é desdobramento, encheção de lingüiça.
Só para terminar. Os diálogos do dr. Nahas com o doleiro, e depois com Celso Pitta, foram a coisa mais nojenta e abjeta, e foram sobretudo um sintoma, ou mais, a prova definitiva e cabal de que eles não participam e jamais vão participar do meu mundo, e vice-versa. É uma questão de correspondência. Me recuso a participar desse lixo. Ora, eu posso não querer me incluir, embora seja incluído a contragosto. Já é alguma coisa, cazzo! Não quero ser mais um negrinho no haras do dr. Nahas, do dr. Maluf, da dona Marta etc. Não quero ser escravo – vou dizer mais uma vez – do enfado desses sultões, e do desprezo que eles têm por todos aqueles valores que nós, ao contrário, sempre fomos obrigados a engolir. Valores deles! Chega a ser ridículo – repito – me indignar como “cidadão”. Cidadão de quê? É ridículo – para não dizer que é má fé – pedir para que o banqueiro Daniel Dantas abra a boca. Para quem? Insisto: se esses canalhas usurpam as leis e a democracia, se eles matam, invadem, aleijam e nos deixam à mercê da gritaria da Ivete Sangalo, por que temos que acreditar e participar disso? Para servi-los? Para incensá-los? Para elegê-los? Para reelegê-los? Para enriquecê-los? Que queimem todos nos quintos dos infernos! Querem saber de uma coisa? Voto nulo é pouco. Estou, nesse momento, anexando ao caldeirão do capeta, junto a essa gente que mandei pros quintos, meu título eleitoral – é uma forma de assegurar uma fogueira completa. Enfim, de aliviar minha consciência, de me ver livre de toda essa sujeira, de fazer política limpa.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.
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