Ludmila Tito Fudoli*
Em termos aéreos, assistimos a tudo nos últimos anos no Brasil. Passamos pela extinção de empresas antigas, pela criação de novas companhias, por terríveis acidentes envolvendo aeronaves de grande porte, pelo nada saudoso “apagão”, causador de imensas filas e terríveis dissabores, e até mesmo pela instalação provisória de Juizados Especiais nos aeroportos para resolver conflitos entre clientes e companhias. O ministro da Defesa foi substituído e a então ministra do Turismo encontrou uma solução para o caos, proferindo frase infeliz que aumentou seu descrédito.
Outra novidade foi a disseminação dos chamados “programas de milhagem”. O uso do famoso “dinheiro de plástico” e a aquisição de alguns produtos e serviços permitem a acumulação de pontos que podem, posteriormente, ser convertidos em bilhetes aéreos. Uma verdadeira febre, da qual os consumidores não querem se curar, e contra a qual ninguém pode se insurgir pois cada um aplica o seu dinheiro da forma como entender mais conveniente.
Pois bem.
A história das milhas ia bem, até que ela se transportou do privado para o público. Nas últimas semanas, assistimos a uma enxurrada de denúncias envolvendo deputados e senadores que, valendo-se de suas “cotas”/milhas excedentes junto ao Congresso Nacional, presentearam parentes, amigos, sogras, namoradas, e etc com passagens aéreas para vários pontos do Brasil e do exterior.
Seguiu-se também uma série de desculpas.
Falou-se em falta de regulamentação.
É de se perguntar se é para rir ou para chorar.
Ora, se as tais cotas foram criadas com o intuito de permitir que os membros do Congresso Nacional exerçam seu mandato e visitem as suas bases (providência até justificável levando-se em conta as dimensões continentais do nosso país), revela-se absolutamente inconcebível que elas sejam utilizadas para compras de passagens que serão ofertadas pelos congressistas a quem lhes aprouver!
Será que é tão difícil entender isso? Será necessário editar uma cartilha ilustrada para que os congressistas entendam a noção de público? Parece que eles faltaram às preciosas lições do jardim de infância em que a professora docemente nos ensina que não se pode mexer no que é dos outros!
E já que a deficiência decorre dos bancos escolares, talvez fosse salutar ressuscitar antiga forma de sanção por meio da qual os alunos eram instados a escrever mil vezes determinado ensinamento para fixar dada lição. Uma frase a ser repetida pelos deputados e senadores seria: “Quando alguém me diz que algo é público, não posso presumir que aquela coisa é de ninguém!”.
Outros lamentaram o ocorrido, se disseram vítimas de equívocos, proferiram frases vazias e alegaram ter feito a devolução do valor correspondente às passagens aos cofres públicos. E basta? E pronto? Ou seja, enquanto não descobrem o mal feito, não falo nada. Alardeado o assalto aos cofres públicos, devolvo o que indevidamente retirei e “estamos quites”? Se isso não for falta de decoro parlamentar, o que será?
Em nota oficial, o presidente da Câmara reconheceu que deputados, inclusive ele próprio, destinaram parte das cotas a familiares e terceiros não envolvidos diretamente com a atividade do parlamento e prometeu estudar novas regras para o sistema de emissão de passagens.
Seguem algumas sugestões.
De início, todos os parlamentares deveriam ser intimados a prestar contas das passagens que foram emitidas em seu nome e de terceiros, dentro da sua cota. A manifestação deveria ser feita oralmente, em plenário, fora do horário do expediente (é claro), transmitida ao vivo, em homenagem ao princípio da transparência e aos eleitores que depositaram suas esperanças no referido parlamentar.
O membro do Congresso teria prazo fixo e improrrogável para expor suas razões e deveria responder à seguinte pergunta objetiva: a passagem emitida para o lugar tal em nome de Fulano diz respeito à atividade ligada a seu mandato no parlamento?
E aí seria a hora de ressuscitar a buzina do Velho Guerreiro Chacrinha, lembram-se? Viagens de férias com a família, excursão da sogra pelos EUA, passeio dos amigos para o Carnaval de sei lá onde, dentre outras pérolas mereceriam o acionamento prolongado do tal artefato.
Seguir-se-ia a entrega ao parlamentar da nota com os valores que ele deve devolver aos cofres públicos e de caixas nas quais ele deve empacotar seus pertences que devem voltar, junto com ele e em caráter definitivo, para a sua base eleitoral. E óbvio que o dinheiro para a passagem de volta deveria sair do bolso do parlamentar desligado da casa.
Não é possível a instalação da referida sessão pública? Pois bem, que aja o presidente da Casa como agiam algumas professoras quando do desaparecimento de um objeto de algum aluno dentro da sala. “Ninguém sai da sala enquanto o objeto não aparecer. Não quero saber quem foi. Vou ficar de olhos fechados até que ele apareça”. E instalar-se-ia uma urna, na qual seriam depositados os comprovantes de depósito dos valores das passagens indevidamente emitidas.
A reestruturação prometida pelo presidente da Câmara deve passar pela promoção de urgentes e indispensáveis cursos intensivos sobre os pronomes possessivos, já que os parlamentares parecem ter se esquecido dos tão importantes conceitos de meu, teu, seu, nosso e vosso!
A rotina da Câmara pós-denúncias e confissões exige o estabelecimento de controle severo das passagens emitidas em favor dos congressistas.
Já não se falou recentemente que a Câmara tem mais de 11 mil funcionários? Que sejam designados alguns para anotarem para onde quer ir o congressista e quando. Anota-se na sua caderneta e avisa-se ao parlamentar que a partir do dia tal ele já pode voar de novo.
Ou melhor e mais moderno: instala-se um sistema telefônico de emissão de passagens. Passo 1: Digite o seu número de matrícula. Passo 2: Digite o número correspondente à cidade para onde deseja ir. Passo 3: Digite o número correspondente ao tipo de compromisso ao qual comparecerá.
E as respostas pré-gravadas podem ser: “ Seu bilhete foi encaminhado para o seu ‘e-mail funcional’ e sua viagem, incluída no sistema de controle de passagens de amplo acesso aos cidadãos”; “O senhor atingiu o limite máximo de viagens neste mês, aguarde o início do próximo para agendamento de novos compromissos”, ou “ O fato de o senhor não ter se valido de todas as passagens para compromissos relacionados ao mandato para este mês não gera crédito de qualquer espécie para o próximo. Os cofres públicos agradecem.”
Sonhar não custa nada.
Contudo, reconheço ser pouco provável o acatamento dessas sugestões e tenho quase como certo o fato de que as torres do Congresso servirão novamente como chaminés para a expulsão dos odores das pizzas que lá serão assadas. E virá o próximo escândalo, com mais ou menos orégano, mas sempre muito indigesto.
* Advogada da União, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
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