Márcia Denser *
Se na Caros Amigos Ana Miranda sapecou o dela, por que não eu? Assim arejando a pauta, desembaçando um pouco o pesado rodenir político, vou falar um pouco do meu cânone, que não é apenas literário, porque se insere num entorno mais amplo, como parte do universo simbólico de fenômenos culturais, artísticos, sentimentais, manifestos em certo lugar e em dado momento. Aliás, sua recepção não se deu em tábula rasa, existe toda uma condição existencial que me conduziu a esses livros.
O despertar para o sexo e o grande mundo ocorreu num Brasil do final dos anos 60 cuja capital mudara há pouquíssimo para Brasília, conquanto a Corte permanecesse no Rio, que continuava lindo, pois era sol, era sal, era sul, era O Pasquim, Leila Diniz, Ipanema ao Leblon, do Beco da Fome ao Beco das Garrafas, na Barra, o Quincas Berro D’Água, o D’Ângelo em Petrópolis, a Fiorentina, o Sachinha, Le Bateau, o Quitandinha, O homem de fevereiro ou março (1), Bebel que a cidade comeu (2), céu e mar: inútil paisagem? (3)
E o barquinho ia embalando todos aqueles cronistas maravilhosos (aliás, a crônica é um gênero brasileiro) escrevendo no Cruzeiro e na Manchete, donde na sala de espera de dentistas e cabeleireiros invariavelmente pintavam Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta, Pongetti, Raquel de Queiroz, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, difundindo a linguagem depurada das altas esferas da criação, a culminar numa espécie de altíssimo modernismo para o qual convergiam o cinema novo, a MPB, a bossa nova, em cujo epicentro resplandecia Tom Jobim.
Que dava o tom do espírito de época, esse lirismo translúcido, essa felicidade por estar vivo, mais, por ser eterno, e que está na base do meu corpo e da minha alma marcando com sua poética meu paradigma estético. Haveria alguma relação entre a limpeza de formas da bossa nova, a pureza de linhas arquitetônicas da Brasília de Niemayer, o concretismo e a poesia ecológica do Tom? Que dele é o texto:
"Enquanto o progresso vai resolvendo certos problemas, cria a cidade neurótica, a São Paulo, a Nova Iorque. O Rio tem tráfego, o assalto, a metralhadora, o apartamento, o confinado, o refrigerado. Aí eu faço uma música como ‘Matita Pereira’ e fica um negócio assim da pessoa ter que ir ao dicionário procurar o significado. O matita-perê é um passarinho do sertão, ele não vai nos auxiliar a comprar o detergente, a ir ao supermercado, a comprar a máquina de lavar. Assim ele começa a virar uma figura… como direi, underground?… uma figura folclórica, um ente, um saci. Ora, o que é que o barulho do Rio tem a ver com o saci? Saci não dá em apartamento!"
Nesse clima, gestei a escritora – um saci de apartamento.
(na próxima coluna, continua o cânone)
Publicidade(1) Antologia de contos publicada em 1973 pelo escritor carioca Rubem Fonseca.
(2) Romance publicado pelo paulista Ignacio de Loyola Brandão em 1968.
(3) "Inútil paisagem", canção de Tom Jobim e Aloysio Oliveira: "Pra que tanto céu/pra que tanto mar/Pra que/de que serve esta onda que quebra/e o vento da tarde/de que serve a tarde/inútil paisagem…" etc. etc.
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