Bajonas Teixeira de Brito Junior*
Em pouco mais de uma semana, o Brasil deparou com três manifestações de depreciação dos negros em grau crescente de gravidade. A primeira foi em forma de pilhéria, dirigida ao ministro do Supremo, Joaquim Barbosa. A segunda expressou nítido desejo de agressão sádica, não só à cantora Preta Gil, mas a todas as mulheres negras. A terceira deu o contorno metafísico e teológico à violência contra os negros, remetendo a origem do negro a uma maldição do Velho Testamento. As três partiram de políticos.
A proximidade temporal desses três atentados raciais, faz suspeitar que eles não são episódios desligados. Uma suspeita que se reforça mais ainda quando se percebe que, nos dois últimos casos, se embaralha propositalmente a questão racial com o estigma homofóbico. Não pensamos, evidentemente, que essas ocorrências lamentáveis tenham sido orquestradas. Ao contrário. Mas justamente porque nada foi combinado é que parece mais instigante a pergunta sobre o por quê de terem eclodido neste momento. É algo que vale a pena averiguar.
São fatos muito significativos porque, até bem pouco tempo, o racismo dissimulado preponderava sobre o racismo explícito, especialmente no discurso das autoridades públicas. O racismo brasileiro, muito denso na realidade, mantinha-se rarefeito no discurso, que insistia na repetição ad nauseam de que o Brasil não era um país racista. Era o oposto, um exemplo para o mundo de democracia racial. Mas alguma coisa aconteceu, e seria interessante saber o que foi que fez com que de repente se rompesse a sólida crosta de dissimulação do nosso racismo.
Primeiro o deputado Júlio Campos (DEM-MT) se referiu ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa como aquele moreno escuro. A frase completa guarda intenções mais amplas e vale a pena citá-la: Depois, você cai nas mãos daquele moreno escuro lá no Supremo. Aí, já viu. A intenção óbvia é de inferiorizar, bastando ver que o fato de o suposto moreno escuro ser um ministro da mais alta corte do país foi deliberadamente omitido. É também jocosa quando usa moreno escuro como um eufemismo para fazer pilhéria com a identificação étnica do ministro, que é negro.
Depois disso, pouco mais de uma semana, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) responde à cantora Preta Gil com todas as pedras de um racismo explícito que suprime as margens de qualquer dúvida. Socialmente desreprimido, moralmente desinibido, o deputado solta o verbo. E na sua resposta não ofende apenas a Preta, mas junto com ela a todas as mulheres negras do país. A pergunta foi clara: Se seu filho se apaixonasse por uma mulher negra, o que você faria?
Essa pergunta não é um pergunta qualquer. É suficiente recordar que Gilberto Freyre, nas pesquisas para uma obra bastante citada mas pouco lida, Ordem e Progresso, também dirigiu essa pergunta a muitas pessoas. Freyre enviou questionários para 183 brasileiros, de diversas regiões do país, nascidos entre 1850 e 1900. Uma das perguntas dizia respeito a como veriam o casamento de filho ou filha, de irmão ou irmã, com pessoas de cor. Com exceção de alguns poucos, a maioria mulatos, as respostas foram negativas.
Resumo alguns exemplos: Manuel Duarte, nascido no Rio Grande do Sul em 1883, lembra o ditado se queres casar bem, casa com igual, e conclui dizendo que não lhe agradaria o casamento de entes que mais eu preze ou adore, com indivíduo de situação inferior. Leonel Vaz de Barros, nascido em São Paulo em 1890, diz que receberia um casamento do gênero como uma aberração de péssimo gosto. Dona Carlinda Custódia Nunes, nascida no Rio de Janeiro em 1874, diz que gostou muito da abolição, mas que se deve apurar [no Brasil] a raça branca. Receberia mal o casamento de qualquer parente com pessoas de cor.
Essas respostas, quando aproximadas do juízo do deputado Bolsonaro, permitem ver a longevidade do preconceito racial no Brasil. Na maioria, os entrevistados não se acham racistas, quase todos viram com bons olhos a Abolição. Mas essa pretensa isenção intelectual diante do preconceito desmorona imediatamente quanto se entra no terreno afetivo. Ultrapassada a névoa das idéias, o núcleo sólido dos sentimentos deixa clara a percepção do negro como inferior.
E como se forjaram esses sentimentos? Em parte, evidentemente, são obras de uma sociedade que viveu durante séculos da exploração do escravo. Vê-los como inferiores era, entre outras coisas, um modo de justificar a degradação a eles imposta. Por outro lado, havia também justificativas de ordem religiosa e teológica.
E aqui pisamos no terreno da terceira manifestação racista mencionada acima. Ela foi obra do deputado federal pelo PSC-SP, Marco Feliciano. Dois posts dele no Twitter chamaram atenção. No primeiro escreveu: Entre meus inimigos na net (sic), estão: satanistas, homoafetivos, macumbeiros…. No segundo, foi além: Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato. Ver aqui
A Revista Época apresenta a seguinte explicação dada pelo deputado, que também é professor de teologia:
A maldição de Noé sobre Canaã (o neto) toca seus descendentes diretos, os africanos, afirmou. Segundo o deputado, Canaã teria sido amaldiçoado porque seu pai teria cometido um ato homossexual, referindo-se a uma passagem bíblica em que Cã (pai de Canaã) ri da nudez de Noé. Alguns eruditos afirmam que a palavra rir aponta para prazer, então o filho abusa da nudez do pai, disse.
O curioso é que o uso de passagens bíblicas para justificar a escravidão já foi muito corrente no Brasil. Ina von Binzen, alemã que atuou com professora no Brasil entre 1881 e 1884, registra como esse argumento teológico era usado para explicar a condição dos negros: Eles dizem que quando Cam emigrou para a África, tinha, por ordem de Deus, tocado com as mãos e os pés nas águas do Jordão, que recuaram, afastando-se dele; mas desse contato ficaram para seus descendentes, mesmo sob o sol ardente da África, essas partes mais claras.. (Von Bizen, Ina, Os meus romanos, São Paulo : Paz e Terra, 1994, p.42).
Uma explicação para a continuidade dessas manifestações, é que, no fundo, o Brasil não possui história. A colônia com sua concentração de bens e poder em mãos de poucos, suas desigualdades absurdas, sua corrupção política endêmica, sua relação predatória com a terra, etc. continua inteiramente presente. Em cinco séculos, o Brasil mudou muito pouco. E se ele chega hoje à posição de sétima economia do mundo, o faz exatamente nos moldes coloniais extrativismo, depredação, monocultura, desigualdades gritantes e violência generalizada. Sim, nos vestimos diferente, usamos celulares e computadores, nos pretendemos muito modernos. Mas isso é apenas uma superfície cosmética, tão tênue como um fio de teia de aranha.
Outra explicação é que justamente o cerne da desigualdade no Brasil está na biopolítica, que desde o início da Colônia distinguiu as posições pela coloração da pele. Os portugueses, que na Europa eram vistos como os africanos do continente, deram a si mesmo o título de brancos puros. Para os brancos nascidos no Brasil e que formaram a classes dos senhores de engenho, foi reservada a expressão inferiorizante de brancos da terra, e daí criou-se uma escala de cores (morenos, pardos, mulatos, negros) sempre demarcando um grau de hierarquia. Assim como os portugueses compensaram seu sentimento de inferioridade transferindo o preconceito que sofriam de outros europeus para os brancos da terra, esses fizeram o mesmo, sentindo-se superiores aos mestiços brasileiros e, principalmente, aos negros, fossem esses escravos ou libertos.
Uma última explicação, é que esta biopolítica está sendo afetada pela primeira vez no Brasil com a política de cotas e outras ações de afirmação racial. Neste momento, os que sabem que em grande parte conseguiram suas promoções sociais (incluindo-se ai o cargo de deputado federal) através da coloração da pele promovem uma reação ao que sentem como ameaça aos seus privilégios.
O privilégio, sobretudo, que têm para exercer o sadismo acumulado em tantos séculos de barbaridades. Não é casual que se faça dos homossexuais, das mulheres e dos negros o objetos dessa nova campanha. Diversos pronunciamentos de entidades de defesa dos homossexuais já apontaram o crescimento do número de assassinatos nos últimos anos. Constatando que 198 homossexuais foram assassinados por motivação homofóbica em 2009, Luiz Mott, fundador do GGB (Grupo Gay da Bahia), ameaçava levar o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), e à Organização das Nações Unidas (ONU).
Em vista desses fatos, não se deve de modo algum minorar a gravidade desses delitos racistas cometidos por representantes públicos. As palavras que pronunciam têm larga repercussão social. Um exemplo bem claro foi a invasão, no dia seguinte à declaração do deputado teólogo, do site da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Não à-toa, os invasores postaram passagens bíblicas que supostamente condenariam o homossexualismo.
Diante desses fatos, o mais grave é a postura (e a política) do líder do DEM na Câmara, deputado ACM Neto (BA), que defende penas alternativas para crimes praticados por deputados. No projeto que relata atualmente, que pelo que já se vê na imprensa abrandará as penas para os deputados e provavelmente reduzirá a zero o risco de cassação do mandato de um parlamentar delinquente, ACM Neto cria uma gradação de penas. Ele afirma que no caso do Bolsonaro talvez cassar seja demasiado. Talvez, diz ele, uma possibilidade de suspensão de mandato ou algo assim seria mais apropriado. Provavelmente, uma suspensão de mandato com manutenção de um super salário, para que um privilégio se some ao outro.
Os ataques e agressões desses três deputados podem demarcar um ponto de viragem no Brasil. O véu de dissimulação, que tem recoberto o racismo brasileiro, seria finalmente rasgado e uma desrepressão generalizada do ódio racial promoveria atos de violência ainda maiores que os atualmente registrados no país. Por outro lado, punições exemplares tenderiam a fazer recuar a febre racista e homofóbica, na medida em que os que se sentem acobertados veriam que ninguém está acima da lei.
Pessoalmente, penso que esses três casos deveriam ir ao Conselho de Ética da Câmara, e que a cassação dos mandatos seria a melhor decisão. Em seguida, os rigores do código penal, e, sendo o racismo crime inafiançável, presumindo-se ainda o fim da prisão especial para portadores de diploma de nível superior, uma temporada de reflexão atrás das grades traria efeitos muito benéficos. Caso isso ocorresse, se começaria a virar uma página da história do país. Mas, como dizia Machado de Assis, o otimista é um bobo. O mais provável é que estejamos à beira do salto contrário, na direção do abismo da impunidade e do aprofundamento do sadismo contra as minorias.
*É doutor em Filosofia, autor do ensaio, traduzido pelo filósofo francês Michael Soubbotnik, Aspects historiques et logiques de la classification raciale au Brésil (Cf. na internet), e dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. Foi duas vezes premiado pelo Ministério da Cultura por seus ensaios sobre o pensamento social e cultura no Brasil. É coordenador da revista eletrônica, Revista Humanas , órgão de divulgação científica da Cátedra Unesco de Multilinguismo Digital (Unicamp) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Ufes
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