Wilson Bueno foi o primeiro a concordar comigo. Aconteceu em Paraty, 2006. Passaram-se três anos e, de lá pra cá, a coisa somente fez piorar. Eu estava na Flip de “jornalista”. Confesso que nunca me imaginei nesse ramo de atividade, logo eu que já vendi antenas parabólicas, títulos de clube de campo, cosméticos. Sou escritor. Mas, antes de ter me metido nessa roubada, também percorri garimpos como capangueiro, trabalhei numa banca de secos e molhados no mercadão, quase me torno agrônomo e cheguei até o final da faculdade de direito por puro fetiche – essa descoberta é recente.
Impressionante, aliás, o fato de ter aguentado cinco anos numa faculdade de Direito. Só agora é que entendi que era atraído não pelo Código Civil, mas pelo salto alto e o tailleur da mulherada, o ar sério e compenetrado, aquela roupinha discreta e as cruzadas de pernas; minha libido se bacharelou em cinta-liga e somente agora – depois de quase 20 anos – é que descobri que fiz mestrado em corte chanel e doutorado em smoking fetish. Ah, coisa mais tesuda quando as doutoras tentam mas não se esforçam muito para disfarçar a lubricidade enquanto o fogo delas arde debaixo da jurisprudência estabelecida. Não existem ambientes mais sacanas que as arcadas, fóruns e tribunais. Nem na zona do meretrício a concupiscência é tão urgente. As doutoras são especialistas nesse jogo; elas carregam uma compostura cínica cuja devassidão está sempre à espreita por trás dos óculos de leitura: prontas para dar o bote, engolir o pau , digo,o réu – tanto faz se for culpado ou inocente. Bacharel em Direito, especialista em fetiche.
Eu passaria mais 50 anos na faculdade de Direito. Ao lado das filhas, netas e bisnetas das gostosonas que estudaram comigo e que, hoje, devem ser juízas, procuradoras, promotoras e advogadas de ilibada reputação e notório saber jurídico. Tesão!
São as melhores boqueteiras as advogadas.
Eu nunca fui jornalista. E, antes de comerciar embutidos no mercadão, antes de vender cosméticos e antenas parabólicas, antes de qualquer coisa – desde criancinha – não fiz nada diferente de escrever.
Isso que eu falava pro Wilson Bueno, e ele, que é outro escritor de verdade, concordava comigo: o escritor, antes de ser qualquer coisa, antes mesmo de ser uma mentira, é um escritor que mente. Rimbaud traficava armas e negros, eu trafiquei animais silvestres. Minha especialidade eram os tucanos e as araras azuis. Isso foi antes, durante e depois de ter me matriculado na faculdade de Direito, final dos 80, meados dos 90. Fui olheiro de time de segunda divisão, empresário de futebol no Vale do Itajaí, fiz campanha pra político corrupto na Praia Grande, e o Carlinhos era meu melhor amigo.
Nem sei por que nunca falei do Carlinhos. Meu compadre, professor de vagabundagem. Até quando ele cismou que eu queria comer a mulher dele. Pô, malandro! Não procede, meu tesão é por manicures e não por cabeleireiras: eu tava mesmo a fim da Deusinha, a paraíba que fazia pés e mãos no salão Art & Estilo e que caiu na vida graças ao meu encaminhamento. Não dei sorte no ramo do turismo náutico, admito. Mas tenho lá meus méritos como proxeneta. Deusinha nasceu para ser puta. As pessoas têm vocação.
No caso do escritor, isso – a vocação – é algo mais visível e inalienável. Ou, como minhas colegas doutoras diziam, “condição sine qua”. Um ajuste, se me permitem: as melhoras boqueteiras são as advogadas, sim. Todavia na magistratura e no Ministério Público – talvez pela liturgia do cargo, sabe-se lá… -, as doutoras gostam mesmo é de um sexo anal bem safado.
Do que falávamos? Ah, lembrei. Se não for escritor antes de ser qualquer outra coisa – repito –, o sujeito vai ser qualquer coisa, e pode se dar muito bem na vida, aliás. É o que eu sempre digo, o Sesc e o Senac têm um monte de cursos profissionalizantes. Vai ser garçom, rapaz! Pra que dificultar as coisas?
Quanto picareta dando expediente de escritor por aí, eu comentava com meu amigo Wilson Bueno. São dublês, falsificações.
Pois bem, lembrei do meu encontro com Bueno, porque, semana passada, fui convidado para ir à Bienal do Livro do Rio de Janeiro.
O mediador – vejam só – queria saber de que forma eu gostaria de ser apresentado. Se fosse num congresso de arquitetura, eu lhe disse, gostaria que me chamassem de Le Corbusier. Mas como se tratava de uma Bienal do Livro, me daria por satisfeito se fosse apresentado como Marcelo Mirisola, escritor.
Marcelo Moutinho, o mediador, ficou espantado. Como assim? Eu não tinha mestrado nem doutorado? Só em fetiches, eu disse. Mas não servia. Não era tradutor, não tinha feito nenhuma pesquisa séria? Não era professor da USP? Não me dependurava em ganchos?
Não havia escrito a biografia de um gênio da bossa nova? Não era colunista de um grande jornal? Meu pai não era pipoqueiro? Eu não morava na periferia?
Escritor? Como é que pode? Só faltou ele querer saber com qual roupa eu pretendia ir ao encontro. Bonito? Também não. Preto? De esquerda? De direita?
Nada disso. Também nunca li nenhum autor afegão. E penso que somente o milionário Paulo Coelho pode se dar ao luxo e à demagogia de compartilhar direitos autorais com internautas pentelhos e folgados. Cioran é minha seicho-no-iê. Não acredito em horóscopo, e – aqui entre nós – a MTV deu uma boa melhorada depois que a Dani Calabresa entrou naquele bixiga, hein? Só está faltando eles mandarem a Penélope Nova para fazer uma expedição de uns 15 anos lá no Simba Safári. As emas, aquelas criaturas sensuais, inteligentes e descoladas, iriam adorar.
Tentei o ramo de auto-peças e me dei mal. Enfim, sou escritor porque não sei fazer mais nada. Se pudesse escolher, seria autista e todos os meus leitores estão cansados de saber que defendo a pena de morte no caso de pizza de mussarela com borda recheada de catupiry. Falei essas e outras para o mediador Marcelo Moutinho – evidentemente de uma maneira mais sutil, educada e sucinta: “Escritor, não basta?”.
Ele ainda vacilava. Então, eu devia fazer o quê? Roteiros para cinema? Também não. Não entendo bulhufas de cinema: para mim, depois de Anticristo, Zé do Caixão e Lars Von Trier são a mesma pessoa. Também sou um analfabeto musical e desde os meus nove anos de idade que perdi o interesse por gibis e pelo Caetano. Como é que ele iria me apresentar?
Escritor-escritor. Como assim? Se eu não passo minhas noites enchendo a cara e me drogando? Que diabos! Como eu que eu posso ser um escritor desse jeito? Ué?
Ué! Eu lhe disse que tinha dez livros publicados, um melhor que o outro, será que não bastava?
Medalhas? Prêmios? Também não. O máximo que consegui foi ter um livro censurado na biblioteca do presídio de Presidente Bernardes. Não sabia mais como dizer ao mediador que eu era um escritor. Chegou uma hora em que fiquei constrangido por mim e por ele. Na falta de atrativos, prometi que compraria uma camisa havaiana para ir ao debate (que foi broxante, diga-se de passagem). E, antes que me acusem de ter me transformado num arroz de festa, eu digo que fui porque o Ítalo Moriconi me convidou, e porque o Reinaldo Pornopopéia Moraes e o Marcelo Rubens Paiva também iriam. Diante do talento e da simpatia desse trio, quem não iria?
Ah, Reinaldo, a propósito: quer fazer a orelha do meu próximo livro?
Sem falar que Lady Hiroshima saiu diretamente dos livros do Tanizaki, ou melhor, veio especialmente de Foz do Iguaçu para o nosso ménage. E depois – esse era o plano… – seguiríamos para a festa argentina da Priscila Miranda, debaixo do sovaco iluminado do Redentor. Por que não?
A festa foi ótima, mas a bienal foi uma bosta. Aquela legião de criancinhas desesperadas correndo e gritando feito loucas. Um porre. Penso que somente as crianças que são excluídas pelas outras crianças, geralmente as mal ajambradas e esquisitas e aquelas que não têm coordenação motora, é que gostam de livros; criança normal gosta mesmo é de zoar – e bem longe do Riocentro. O convívio com bons livros, a meu ver, não é saudável antes dos 30 anos de idade. Eu penso, por exemplo, que é um desperdício ler Borges e não ter os instrumentos intelectuais para compreendê-lo. Questão de discernimento. O sucesso da Xuxa na Bienal chancela essa regrinha de três diabólica. E – infelizmente – não me tira a razão.
Enquanto isso, picaretas de auto-ajuda fechavam negócios, galãs e galinhas globais brilhavam, jornalistas caipiras se deslumbravam com uns gringos meia-boca, o Ziraldo tirava suas casquinhas, e os xaropes de sempre faturavam em cima. Apesar disso – e apesar de o Riocentro ficar na casa do chapéu –, eu fui. Aquela Meg Cabot é uma retardada.
Eu fui, sim. Sem álibis, só eu e meus livros. Nunca precisei tomar Rivotril para escrever. Nunca fui preso. Também nunca fui internado num manicômio. Durmo cedo e acordo mais cedo ainda. Meus livros, graças a Deus e ao Cioran, não rendem imagens cinematográficas e – lamento decepcionar o leitor novamente: – nunca tive tesão na minha mãe.
E lá, no meio do debate, no maior couro de piça, a coisa não decolava. Reinaldão falava de suas broxadas, estávamos sem assunto e com o mediador mais perdido que cego em tiroteio, o som do microfone abafado e as ideias idem… crianças se esgoelavam para ver algum Bozo pedófilo do lado de fora.
Sei lá por que e meio que sem jeito, começo a falar que os picaretas e os dublês de escritores, uma horda de psicanalistas, antropólogos, professores da USP metidos a sambistas, putas, apresentadores de televisão, socialites & rappers e o escambau, tomaram os livros de assalto… nesse instante, quando ia coroar meu brilhante raciocínio citando o dr. Vampirinho Varella … bem, na hora que eu ia decolar, o Marcelo Paiva concordou comigo, e eu achei que ele havia comprado minha versão, e calei.
Mas, de repente, o autor de As fêmeas mudou o discurso… pensou bem, e supostamente deve ter chegado à conclusão de que Carlos Drummond de Andrade era apenas um pacato funcionário público, que Pedro Nava era uma bicha enrustida e médico, que Euclides da Cunha era engenheiro e corno, que Guimarães Rosa era diplomata. Que, em suma, eu estava exagerando, e assunto encerrado. Aí eu travei. E o debate empastelou de vez, patinamos até um final triste e melancólico.
E somente hoje – depois de 48 horas – é que me dei conta de um dado simples que liquida a questão. Ouve isso, Paivinha: João Guimarães Rosa era um escritor que fazia bico de diplomata. Bingo, né?
O Itamaraty era apenas um bocal espanado. Um bico, um extra. Ou alguém lembra de algum despacho de Guimarães Rosa no Itamaraty mais relevante que Grande Sertão: Veredas ? A mesma coisa vale para João Cabral de Melo Neto. Antes de qualquer carimbo de passaporte, ele é o autor de A educação pela pedra; e vale, sobretudo, para Vinicius de Moraes, outro que pintava paredes, instalava chuveiros elétricos e fazia bicos no Itamaraty porque… ora, porque era escritor antes de ser qualquer outra coisa! Antes, durante e depois de encher a cara também! Simples assim, e eu deixei passar…
No final do debate, recebi um bilhete com letrinhas redondas e apaixonadas, que dizia o seguinte: “Mirisola, você é um bobo”. Além de bobo, lerdo.
O “Monólogo da Velha Apresentadora” está acabando. No mês de outubro ficaremos em cena apenas aos domingos, 18h30. E terminaremos a temporada no último dia das Satyrianas, às 18h. Será segunda-feira, dia 2 de novembro. Finados.
Convido a todos a beber a Velha comigo no Dia dos Mortos. No teatro dos Satyros 1. Pça Roosevelt, 214, São Paulo, SP
Com Alberto Guzik, Chico Ribas
Direção: Josemir Kowalic
O texto é meu, né?
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