Márcia Denser
Sabe-se, magicamente, com aquele saber distraído destinado às coisas sem importância, como quando se afivela no rosto a cara de circunstância ou pronunciam-se frases de ocasião ou se faz o sinal da cruz a título de esconjuro, que artistas e poetas de gênio, no papel de antenas da civilização, podem prever o futuro, conquanto, racionalmente, já não se acredita que artistas sejam antenas de coisa alguma. Afinal, quem se preocupa com clichês? Ninguém, salvo escritores, para quem essa idéia não é nenhum clichê, embora contenha uma misteriosa verdade não demonstrável.
A última vez que Carlos Drummond de Andrade me assombrou foi logo após o 11 de setembro de 2001, quando um amigo escritor me mandou sua Elegia 1938, que entre nós, escritores, circulou de coração a coração como samizdat**. Transcrevo os dois últimos versos:
Caminhas entre mortos e com eles conversas
Sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
E adiar para o outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
Porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Um poeta como Drummond é porta-voz da boa (e má) consciência coletiva, no caso, a brasileira. E a consciência coletiva é atemporal porque tem o dom da ubiqüidade: move-se para trás, reportando-se ao passado, e para frente, visitando o futuro. Este poema, por exemplo, escrito da distância infinita de 68 anos atrás, aponta palavras futuras que diríamos se tivéssemos coragem.
Sabe, Carlos, já estamos no outro século, mas já adiamos para o próximo a felicidade coletiva. Porque continuamos covardes.
PS: Havia acabado de mandar essa coluna para o meu editor aqui do congressoemfoco, quando recebo mensagem de Paula Barcellos, do JB, convidando, bem como outros escritores brasileiros tipo Affonso Romano, Sérgio Sant’Anna, Milton Hatoun, a participar com uma crônica do caderno especial sobre a Copa, oportunidade em que também se estaria homenageando Carlos Drummond de Andrade, pois ele escrevia nesse espaço no JB. Pensei: meu Deus, não é que essa história de "antena de escritor" funciona mesmo? Assim é que esta crônica sai na edição especial do JB, na qual tenho a honra de apresentar CDA himself. Afinal, em tempo de Copa, quando cada brasileiro gostaria de ser guru ou adivinho, escritores e suas antenas serão mais do que bem-vindos, não é?
**Do russo, escritos clandestinos como livros, contos, poemas, artigos, que circulavam entre intelectuais devido à censura.
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