Márcia Denser*
O neoliberalismo soube aproveitar-se como ninguém dos esquemas libertários da década de 60 – é o que demonstra o filósofo francês Dany-Robert Dufour, professor da Universidade de Paris-VIII, autor de L’art de réduire les têtes, editora Denoël, Paris, 2005 (não sei se já existe uma tradução brasileira) já discutido em outra coluna (leia aqui). Nessa obra ele evidencia a profunda reconfiguração das mentes realizada pelo mercado, uma vez que este recusa qualquer consideração – moral, tradicional, transcendente, transcendental, cultural, ambiental – que possa impedir a livre circulação da mercadoria no mundo.
É por isso que o novo capitalismo tenta desmantelar qualquer valor simbólico unicamente em benefício do valor monetário neutro da mercadoria. Dado que não há mais nada senão um conjunto de produtos que são trocados por seu estrito valor comercial, os homens devem livrar-se de todas as sobrecargas culturais e simbólicas que, até há pouco tempo, garantiam suas trocas. Dufour comenta: “Tem-se um bom exemplo dessa dessimbolização produzida pela expansão do reino da mercadoria quando se examina o papel-moeda emitido em euro. Observa-se que estas notas perderam as efígies das grandes figuras da cultura que, de Pasteur a Pascal e de Descartes a Delacroix, indexavam, ainda ontem, as trocas monetárias sobre os valores culturais patrimoniais dos Estados-nação. Hoje, não há nada impresso nos euros além de pontes e portas ou janelas.” Exaltando o quê? Uma aridez de natureza morta? Pede-se às pessoas que se curvem ao jogo da circulação infinita da mercadoria, pois a lei do mercado é destruir todas as formas de lei que representem uma pressão sobre a mercadoria.
Ao abolir qualquer valor comum, o mercado está em vias de fabricar um ser privado da faculdade de julgar, sem outro princípio que o do lucro máximo, levado a desfrutar sem desejar (a única salvação possível encontra-se na mercadoria), formado em todas as flutuações da identidade (não há mais sujeito, apenas subjetivações temporárias, precárias) e aberto a quaisquer conexões comerciais. Estamos aqui diante de um aspecto muito particular da desregulamentação neoliberal que ainda não é bem compreendida, mas que já produz efeitos consideráveis sobre o psiquismo. E aos sintomas decorrentes desta desregulamentação chamamos depressão, dependência, pânico, perversões diversas e inúmeras, basta ver qualquer desses filmes sheet americanos que passam na tevê a cabo para obter uma AMPLA compreensão do que queremos dizer.
O autor aponta a conexão com o ideário dos anos 60: “Esta desregulamentação simbólica é acompanhada de um ar libertário, baseado na proclamação da autonomia de cada um, abrangendo todos os campos sociais, inclusive o dos costumes. Uma vez que o patriarcado opressivo está em declínio, acredita-se que uma revolução sem precedentes estaria a caminho, esquecendo-se de que foi o próprio capitalismo que comandou esta ‘revolução’ visando facilitar a penetração da mercadoria nos domínios onde ela ainda não reinava – o dos costumes e o da cultura”. Quer dizer, uma falsa transgressão – só na forma, na aparência, posto não ter mais razão de ser, afinal, transgredir o quê? – já vem prescrita na bula de toda obra artística produzida atualmente. Revolução e transgressão viraram mercadorias e se vendem caríssimo (vide Artes Plásticas) ou baratinho (vide neo-retro-pós-poetinhas) – conforme o índice de ignorância e/ou imbecilidade do comprador.
Desde o século XVIII, o próprio Marx escreve: “O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a incessante introdução de mudanças na produção, a desestabilização contínua de todas as instituições sociais, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais dissolvem-se; as que as substituem envelhecem antes mesmo de se esclerosarem. Tudo o que era sólido, se desmancha no ar, tudo o que era sagrado se encontra profanado e, afinal, os homens são forçados a considerar com um olhar desiludido o lugar que ocupam na vida e suas relações recíprocas.”
E esta capacidade de transformar as relações sociais atingiu o ponto máximo através desse novo “anarco-capitalismo”.
Essa transformação funcionou tão bem que houve quem tentasse reter apenas o lado “libertário”, “jovem” e “conectado”, acreditando-se “muitíssimo revolucionário”. É exatamente o que quer dizer o anarco-capitalismo que gosta, se não da “revolução”, pelo menos de todas as formas de desregulamentação culturais e simbólicas. Todos os spots publicitários mostram isto. E seria um erro deixar o debate sobre os valores para os neoconservadores, se abandonarmos esse terreno, ele será, como nos Estados Unidos, ocupado por George W. Bush, tele-evangelistas & pós-puritanos, ou, como na Europa, pelos populismos fascistóides.
O discurso capitalista, dizia Lacan, é algo loucamente astucioso, funciona perfeitamente, não pode funcionar melhor. Mas justamente porque funciona depressa demais, se consome. Consome-se tão bem que se esgota. O verdadeiro problema do capitalismo é que ele funciona bem demais. Tão bem que acaba consumindo tudo: os recursos, a natureza, inclusive os indivíduos que o servem. Na lógica capitalista, o antigo escravo foi substituído por homens reduzidos à condição de produtos consumíveis. O que permite compreender que é exatamente nesse sentido que devem ser entendidas as expressões da cartilha neoliberal: “o material humano”, o “capital humano”, a gestão esclarecida dos “recursos humanos” e a “boa governança ligada ao desenvolvimento humano”.
Em síntese: a suspensão atual das proibições revela que perdura um verdadeiro projeto pós-nazista de sacrifício do humano. Ele é sustentado pelo anarco-capitalismo que, ao mesmo tempo em que quebra todas as regulamentações simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha até quebrar a humanidade.
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