Paulo Stanich Neto*
Embora nosso gigantesco país tenha sido descoberto após o período da Alta Idade Média (séculos V a X), vivenciamos, em pleno século XXI, uma semelhante Idade das Trevas, cujos elementos muito se assemelham às características daquele tempo remoto, só que hoje com uma roupagem democrática hipócrita, que traz a penúria ao povo nas asas de discursos de falsos Messias, substituindo as argumentações eclesiásticas daquela época por exposições populares.
A nuvem de caos que paira sobre o Brasil hoje se assemelha fortemente à daquela época, que – não fossem os costumes, as vestimentas e as datas – poderíamos com muita facilidade equiparar as características épicas e lograr êxito no seu estudo comparado e localizar suas semelhanças.
O desespero do povo brasileiro é angustiante. Trata-se de uma gente que acreditava em um movimento partidário diferenciado. Embora todos soubessem que seria impossível fazer milagre, ninguém esperava pelo retrocesso e a calamidade em que se encontra o país. As possibilidades de sucesso em tudo que se faz se estancam em face de uma crise que supera a economia e atinge o estímulo dos cidadãos. As pessoas estão descrentes, pois, desde a última tentativa de mudança, de certa forma, carregam o sentimento de fracasso na escolha. Analogicamente, poderíamos contrastar esse período ao da queda de Roma, no final do século V, em que a ausência de Estado abriu a Idade Média.
Embora as coisas não fossem muito bem desde antes, ninguém poderia imaginar que o pior ainda estivesse por vir. Imagine o leitor o que se passa na cabeça dos funcionários públicos ao verem que o estadista que eles mais apoiaram, acreditando de boa-fé que seu trabalho seria finalmente reconhecido, ganharam de presente a reforma da Previdência, atropelando seus direito adquiridos, suas expectativas e seus sonhos. O trabalhador da iniciativa privada tem que viver com a “tsunami” do desemprego, que, mais hora menos hora, irá varrê-lo do mercado de trabalho, retirando-lhe a dignidade.
O empresariado padece com as quebras sucessivas de seus fornecedores e clientes, e convive com a sensação de que, a qualquer instante, será ele a próxima vítima. É por esse motivo que ousamos fazer a analogia entre esses dois períodos, ainda que distantes, que podem ser chamados de Idade das Trevas!
Quanto ao mercado de trabalho para os profissionais de todos os níveis, quase nenhuma regra quanto à remuneração é respeitada, pois o desespero do trabalhador é tão grande que se submete a qualquer salário, a quaisquer condições para ter seu emprego garantido. A procura pelos cargos públicos chega a números em escalas absurdas.
PublicidadePessoas de todos os níveis vêem hoje o emprego público como a melhor opção para uma vida digna, em face de sua estabilidade. A livre iniciativa reduz seus lucros de forma nunca antes imaginada em troca da fidelização dos seus clientes. Esta é a Idade das Trevas, na qual todos procuram, em uma nova versão, seus senhores feudais em troca de proteção e garantia de sobrevivência. Trata-se da regressão comercial e monetária, fenômeno típico da Alta Idade Média.
Nossa era é melhor quanto às pestes. Em comparação com o passado não padecemos tanto com as epidemias patológicas daquela época, mas isso se deve ao esforço da comunidade científica. A peste agora é a miséria para aqueles que já tinham pouco. É o estresse e a insegurança daqueles que ainda têm um pouco, e a decepção para aqueles que pretendiam ter um pouco. A fome é a mesma daquela época, só que agora mascarada por programas de marketing que são verdadeiras falácias.
A segurança pública é outro aspecto que também traz verossimilhança ao título desse despretensioso artigo. O que vivemos hoje é o que o austríaco Hans Kelsen chamava de “Kaosrecht”, ou seja, o caos da ordem jurídica, o absoluto desrespeito às leis. Em todas as metrópoles e rincões do Brasil, padecemos com uma violência mais selvagem que naqueles séculos de sombra, pois hoje sequer o assassino tem temor a Deus, que era o freio para barbárie na época, ou respeito aos próprios pais. A miséria e o desespero são os únicos responsáveis pelos crimes em todas as suas alçadas, direta ou indiretamente.
No primeiro caso, a pessoa mata como única forma, ou a mais fácil, de adquirir bens indispensáveis pela sua sobrevivência, seja em decorrência de ter nascido no berço do crime, ou pelo fato de ter sido jogado a ele por desespero de causa, e o Estado nada faz para assessorá-lo. Esse é o direto. No caso dos crimes que não possuem nenhum nexo com a questão patrimonial, trata-se de princípios familiares que se perderam, pois hoje o pai e/ou a mãe desempregados ficam com sua dignidade ferida, a família padece com as dificuldades financeiras, tornando-se alvo fácil da desestabilização da célula social, e o desespero e o estresse afastam o carinho e o diálogo, acarretando várias conseqüências, chegando ao extremo do o homicídio ou simplesmente às discussões agressivas repetitivas. Esse é o indireto.
A maior coincidência, sem dúvida alguma, é a semelhança entre a estrutura política atual com a feudal. Ambas têm como pedra de toque a vassalagem, que hoje recebe nomenclaturas mais modernas como cargos comissionados e apoio partidário a pequenos principados como Estados e cidades sob o mesmo regime Falso-Popular Moralista.
A sociedade feudal estrutura-se em relações de dependência pessoal, ou vassalagem, que abrangem desde o rei até o camponês. O vassalo oferece ao senhor, ou suserano, fidelidade e trabalho, em troca de proteção e um lugar no sistema de produção, hoje o complexo empregatício da administração pública. O senhor feudal também é vassalo de outro senhor, e assim sucessivamente, até chegar ao rei, que é o suserano maior.
Todo nível de vassalagem paga algum tipo de serviço ao seu suserano e ao rei. A vassalagem deste último governo chegou a níveis de causar inveja aos vassalos da Idade Média, com a quantidade de cargos distribuídos – diga-se de passagem, sem concurso – nas administrações da Frente Falso-Popular Moralista. E ao camponês que hoje é tudo o que não é vassalo, sobrou o quê? A paciência de continuar escutando os discursos hipócritas, as taxas inventadas para torná-lo mais pobre, as reformas inconstitucionais e o direito de votar neles novamente. Mas nem todos os que padecem de pouca formação acadêmica podem se tornar Carlos Magno, que se alfabetizou aos 32 anos de idade e foi o melhor rei na Idade Média.
*É jornalista e advogado. Diretor do jornal Carta Forense, é autor do livro O Manual do Estagiário de Direito.
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