De óculos ficava com um ar depravado, exatamente ao contrário do que deveria,evidenciando os lábios sensuais, uns olhos oblíquos, os cabelos em estudado desalinho.
Nascida em 55, Júlia Zemmel era judia, refinada, escritora e ainda uma bela mulher, principalmente com aquelas lentes claras, transparentes, aliás os homens adoram isso: sempre preferem as vesgas.
Óculos acentuavam aquele seu ar idiota (eles também adoram mulheres idiotas) e dizer-se judia e escritora não seria um ato de fé? Não, pensa Júlia: uma vocação para a infelicidade, algo visceralmente fora de moda, tanto quanto ter quarenta e cinco anos, oito quilos a mais e todas as ilusões a menos, noves fora: não exagere, Júlia, nem todas.
Sexo, por exemplo, nunca fora problema, problema moral, queria dizer, e se não havia pecado culpa não havia, nada além de remorsos de ordem estética – o que significava trepar com escriturários, mensageiros & acompanhantes anônimos meio aleatoriamente, depois se arrepender amargamente e dormir na pia – isto eram remorsos de ordem estética.
Nos confins dos anos 80, essa havia sido a fase da promiscuidade, algo atualmente impraticável e ainda mais fora de moda. Porque sexo agora era todo o problema, pensou Júlia examinando-se no espelho.
Nesses tempos ruços impõe-se o maldito patrulhamento em nome do sexo-seguro-anti-aids e é tão eficiente que Moisés teria vergonha do seu decálogo e respectivas interdições e ameaças com o fogo da geena, imagine, que o inferno é aqui mesmo, onde ficou quase impossível materializar o corpo do desejo, convertido numa espécie de martírio tantalizante de ter tudo tão perto e, ao mesmo tempo, inatingível. Na realidade, o patrulhamento social é o moderno sucedâneo da lei mosaica. Porque Júlia detestava ficar só na imaginação – aliás não tinha muita imaginação – inclinava-se pelo que podia pegar e pegava o que podia.
Começava a ter vergonha de sentir tesão.
Então por razões de fora e de dentro (e idade era um fato), tinha que desbaratinar o tesão conquanto a imagem no espelho lhe desmentisse a paranóia, sugerindo que, por ora, nada teria a desbaratinar, seu corpo ainda dispensava as roupas e os fatos abstratos de ordem cronológica.
Então o problema era a idade daquele Gabriel. Quando ele lhe disse ter trinta anos, Júlia sentiu uma zoeira distante, como se fosse sair do ar, desmaiar. Porque ele disse a idade intencionalmente, o olhar falsamente distraído, um risinho imperceptível no canto dos lábios, atento à minha reação, o filha da puta. E Gabriel era um homem bonito, diga-se, não do tipo explícito, gênero comercial de gilete. Fazia mais a linha casual look.
Era um jovem arquiteto. Não. Um arquiteto jovem. Não. Era um jovem, arquiteto de profissão e escritor por vocação. Talvez. Era muito jovem de qualquer forma. No futuro talvez se tornasse mais escritor que arquiteto, como podia ser ao contrário. Sabia por experiência que pessoas bonitas não escolhem a literatura por destinação (e se o fazem hão de ser geniais, o que não era o caso) porque não é uma profissão, antes uma vocação para a infelicidade, que não exclui o celibato como pré-condição para se casar com a humanidade.
Em dado momento da vida, Júlia também vendera a alma, fizera seu voto -essa espécie de moratória às avessas, de compromisso não escrito com a divindade, a desobrigá-la de marido & filhos e condená-la à solidão e à promiscuidade, à perseguição do pecado perfeito, atando-a voluntariamente e para sempre às cadeias da condição humana.
Humanidade que aliás anda muito desumana ultimamente, suspirou Júlia desligando o computador, fechando as janelas: virou algo como uma pós-humanidade da qual, presumo, esse pós-Gabriel – pós-graduado aos trinta anos em arquitetura no que pretende pós-doutorar-se e que se pretende escritor por mal dos pecados – faz parte.
Júlia saiu, batendo a porta: ia almoçar com aquele Gabriel.
II
Aquele Gabriel levantou-se acenando, quando a viu entrar no Carlino.
– O que vai ser? – olhou-a interrogativo abrindo o cardápio, após trocarem cumprimentos numa efusão de pastas e livros.
– Para dizer a verdade… – reticente, Júlia examinava o cardápio sem ler.
Ele esperava, com amável simpatia. Tempo. Saco, pensava Júlia perfidamente, espera que eu termine a frase e peça supremo de frango
com creme de milho e suco de laranja. Tempo, tempo.
– Enquanto você pensa, vamos beber, disse ele acenando ao garçom.
– Perfeito. É o que eu ia sugerir e não me atrevia – fechava o cardápio, sorria, surpreendia-se Júlia.
– Por quê?
– Hoje em dia somos patrulhados se fumamos, se bebemos, até se fazemos amor sem ca…
– Trepamos, você quer dizer. Se trepamos sem camisinha, vou te patrulhar os eufemismos.
– Por razões de ordem estética, suponho.
– Ética, eu acho. A honestidade consigo mesma não está sujeita a modismos, segure seu copo, isso, esse vinho merece que brindemos às musas, tin-tin.
Sempre sorrindo, Júlia cerrou os olhos: não era só uma bela figura de homem, o sujeito tinha senso de humor, um espírito nobre, sem contar a presença de espírito. Júlia sentia-se malditamente em desvantagem: a não ser a recomendação de um escritor amigo – que aliás ele também não conhecia – além do fato dela trabalhar na Fundação e poder ajudá-lo no projeto de pesquisa, sua persona não a precedera. Ele não a conhecia nem de nome, nem de obra, de forma que não podia lançar mão de sua fascinante persona. Ele parecia aceitá-la com uma espécie de celestial placidez. Bastava-lhe ser mulher simplesmente, e ser mulher implesmente, sem insígnias de poder e na idade de Julia, não era grande coisa.
– Podemos ser amigos, disse Júlia hipocritamente – mas você ainda não disse o que acha do patrulhamento e tudo o mais.
– Não sei, não conheci o mundo em outras circunstâncias, suponho que antes devia ser diferente, e também suponho que por poucos anos perdi muita coisa, mas não sei, não vivi.
– Confessa que não viveu! exclamou Júlia que imediatamente percebeu que ele não entendera a alusão à Neruda. – Pois é, – ela acendeu o cigarro – é isso aí, o buraco no tempo, assim fica difícil a gente se entender, porque não basta saber intelectualmente, você mesmo disse, sua vivência se restringe ao presente.
– Então por que não me ensina? A ver as coisas de modo diferente, quero dizer.
– Gabriel hesitou, mordeu os lábios, arriscou: – Atualmente você se arriscaria a transar com alguém tipo “ac”, acompanhante anônimo? Aposto que não.
– Não tem clima, não tem mais, – disse Júlia com ar ausente – o lance talvez seja atualizar as fantasias, falando nisso devolvo-lhe a pergunta, e você?
– Para quê, se é melhor com a namorada?
– Veja só, então você saca muito bem o patrulhamento, em 70 também tinha mas era diferente. Proibiam-se manifestações de afeto e sentimentalismos idiotas porque eram burgueses. A independência em altíssima, bem como o ativismo literário, sabe, íamos mudar o mundo, mas em 80 veio a Aids, em 90, a guerra do Golfo, caiu o muro de Berlim, o regime soviético e o socialismo real entraram em colapso e o mundo mudou a despeito de nós e para infelicidade geral. Naturalmente tem gente que não acha, a esmagadora maioria, por exemplo, tão preocupada com tua saúde, tua eugenia, tua sanidade, visto não te deixar fumar, beber, trepar com ou sem. Sabe porque se fala tanto em sexo? Sim, você já está adivinhando. Fala-se porque não se pratica.
– Não entendo mulher bonita com problemas existenciais, no duro mesmo – Gabriel fitava-a, preocupado. – Sem contar, mas já contando até porque é inevitável, que esta é a terceira garrafa de vinho. Devia comer alguma coisa.
– Está bem, está bem, Júlia levantava-se, tateava os sapatos sob a mesa, as pastas, a bolsa: aquele Gabriel desmoronava, era um babaca, mas ele a reteve: – Espere. Num instante, pagou a conta e voltou: – Te levo para casa.
O automóvel estacionou na porta do prédio.
– Tenho impressão que você me odeia, lascou ele. Meio tonta, sem pensar, Júlia abria a porta, saía do carro:
– Não é você, não odeio você, é outra coisa, malditamente outra coisa. Olhe, desculpe o vexame.
– Bobagem, você não se livra de mim assim tão fácil. Da próxima vez trago minha namorada para te conhecer. Foi divertidíssimo, cuide-se.
Júlia olhou-o duro, meditou um instante, então disse:
– Sabe, se eu fosse homem e tivesse que me virar, meu nome de guerra seria Adriano, Adriano AC (fazia duas homenagens, que nem se dava ao trabalho de dizer porque aquele Gabriel não ia sacar mesmo). – Claro, muito divertido, mal posso esperar para conhecê-la também, adeusinho.
III
Sempre havia Rudi Woolf – que reaparecia em momentos de aguda dor-de-cotovelo, uma espécie de inimigo íntimo – o ex-namorado dissoluto e meio veado, a quem o celibato também escolhera mas por razões inconfessáveis. Pelo menos, enquanto a mãe estivesse viva e pudesse deserdá-lo.
Nos entendíamos.
Pecar é trair? perguntava-se remotamente Júlia enquanto se despiam, as mãos desvencilhando-se de botões e zíperes: separar as coxas e tomar a primeira estocada, a segunda, a terceira, fechando os olhos, imaginando ser outro a possuí-la, girando de bruços para imaginá-lo melhor, ainda que parcialmente, mas esta possessão por trás é tudo o que não é Gabriel e a ausência do Arcanjo Anunciador é a instância do Traidor, daquele que acaricia e arranha e uiva na treva.
IV
Daí houve aquele intervalo que seria antes a ausência daquele Gabriel que foi se impondo a partir de tanta promiscuidade e dissolução retro mencionadas, daquilo que me dissolvia e derretia e revolvia e que era a saudade daquele Gabriel bocó/ingênuo/tolinho que não seria escritor futuramente pois teria oito filhos com aquela namorada que ia me achar divertidissima, que daqui a dez anos estaria com mais trinta quilos, enquanto eu, poderosa e enxutíssima aos cinqüenta e cinco, podia apostar que ele daria adeus à carreira de ex-futuro escritor, arquitetar-se-ia, sabe-se lá, quando muito em pós-doutor, desperdiçando-se com filhos, futebol, shopping, macdonald, se tornaria o quê diante da tevê? daqui a vinte, trinta anos, ao fim e ao cabo do pós-capitalismo tardio como seria lembrado postumamente? como pós-consumidor? e assim caminhou a humanidade nesses quinze dias em que ele não deu o ar da graça na Fundação, nem pelo correio eletrônico, porque dia após dia era sobretudo a ausência daquele pós-Gabriel que se amarrava na Web.
V
Reapareceu no início do outono sempre na Fundação, pelo correio eletrônico sobrava eventualmente um rabo de conversa, donde o chopinho ao cair da tarde.
– Não entendo este voto de celibato, dizia Gabriel, uma coisa não tem a ver com outra.
– Se fosse veado, entenderia, disse Júlia só de sacanagem.
Ferido nos brios, levou-a a um motel. Possuiu-a quatro,cinco vezes com um ódio que não era ódio, mas tesão reprimido. Porque o sexo é um louva-
a-deus, uma luta de vida ou morte, a perseguição implacável do pecado perfeito.
– E isso está muito literário, disse Gabriel assoprando-lhe um fiapo grudado nos cílios: – Venha cá, ainda não te odiei o suficiente, Tintin.
Então é comemorar e compreender, comemorar e compreender e arder e queimar e murmurar roucamente (porque estava resfriada de tantas curtições) que te amo, te amo, te amo, mas não te amo, não é mesmo? Na cama, enquanto Gabriel armava jogos, fazia planos e o futuro e os projetos, etc., eu ouvia – não conseguia pensar – e perdia novamente meu coração traiçoeiro nesse braço de ferro, nesse mano a mano com a vida, vagamente pensando em como dar o fora e se ainda com alguma dignidade. Minha dignidade, no momento, era cor-de-rosa e balançava mansamente no cabide do quarto de motel, porque ventava e a janela estava aberta.
Assim não é possível, assim não é possível, desesperava-se Júlia a propósito dessa paixão que se multiplicava e se estendia inexoravelmente pelos trabalhos e dias e meses de êxtase e agonia.
Uma noite ele apareceu com olheiras fundas, dizendo não ter dormido nada, ter bebido todas, ter chorado potes, ter dito um monte para a namorada e ato contínuo ter rompido com ela. Para sempre. Por você. Para ficar com você.
Júlia ficou em silêncio: se alegasse os motivos de sempre, a idade, o tempo, o insólito celibato, não colaria, ele iria me enrolar até que o tempo realmente se fizesse imperioso, mostrasse sua face horrível e seria a vez dele cair fora sem remorsos sem choro nem vela e azar seu, Júlia, que então decidiu-se. Contou-lhe sobre Rudi Woolf.
VI
Não o viu mais. Passaram-se cinco, seis, oito meses, um dia chegou a participação de casamento de Fulano e Beltrana. Ótimo, pensou Júlia abrindo o correio eletrônico, recebendo a mensagem:
Sozinha? Esplêndido! É assim que eu te quero.
Primeiro Encontro & preliminares sem compromisso.
Adriano.com.
Ora, ora, pensou ela, na Web, discurso de biscate e de bandido se confundem, esse aí parece querer certificar-se se estarei só pra me assaltar, mas por que não? Fosse por tédio ou cinismo ou indiferença, clicou ok, pensando que doravante ia ser isso aí, precisava ir treinando, se acostumando. Ainda doía, mas isso era bobagem. Afinal, não tinha muita imaginação (e dor de amor é por conta disso): inclinava-se pelo que podia pegar e pegava o que podia.
Às oito, a campainha soou pontualmente.
Júlia abriu a porta: no limiar da noite, do pecado perfeito, sorria-lhe Adriano-Gabriel.
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