Renato de Mello Jorge Silveira *
Novamente volta ao debate a reforma do Código Penal. Com incomum pressa e rapidez, pretendeu-se a votação do novo Código. Incomum foi também todo o desenrolar do processo legislativo. Incomum foram os passos da chamada Comissão de Juristas, bem como a celeridade da avaliação e das propostas de relatório final. A dúvida parece residir na legitimidade, ou não, desse verdadeiro suceder incomum.
Que se inicie dizendo que reformas penais são necessárias, ainda mais no cenário atual. Disso ninguém duvida. A forma pelo meio da qual tais reformas devem se dar, no entanto, é motivo de questionamentos de toda a ordem.
Por outro lado, e por questão não menos fundamental, que se afirme pela escorreita legitimidade do Parlamento decidir sobre o plano normativo – inclusive penal – a ser posto no país. Representantes eleitos do povo, aos congressistas é atribuída a missão superior de reformar a legislação nacional. Novamente, no entanto, a forma pela qual isso se dá é que suscita questionamentos.
Em 2012, sob a batuta de Miguel Reale Júnior, professor titular da Faculdade de Direito da USP, movimentaram-se associações de classe de advogados, da Defensoria Pública, do Ministério Público e da Magistratura, além da Academia e de institutos científicos vários, que, em uníssono, criticaram e rejeitaram as propostas de reforma que já se desenhavam. A leitura preliminar do anteprojeto acentuava os vícios fatais que prejudicavam todo o conjunto da obra posta.
Não obstante todas as denúncias feitas sobre os erros primários contidos naquela proposta, o procedimento foi em frente. Presentes eram equívocos dogmáticos e de redação, de ordem científica e de confusão ideológica. Tudo era absolutamente errático. Sob a alegação de que o povo feito parlamentar teria toda a legitimidade para proceder a reformas legislativas, deu-se continuidade ao andamento do processo, agora encabeçado pelo senador Pedro Taques. Lançado seu relatório final, anunciou-se sua votação no Senado Federal.
Notadamente deram-se mudanças significativas em relação à redação da Comissão de Juristas. Em primeiro lugar, alguns erros e equívocos foram corrigidos. Esse, um mérito inegável. Outros tantos, no entanto, foram mantidos ou agudizados. Foram trazidos à realidade da (pretensa) reforma todos os projetos de reforma penal presentes no Senado Federal. Sob a desculpa de uma reforma global, somam-se tentativas de modificação penal as quais teriam menor chance de resultado em condições normais e serenas de trâmite legislativo.
Aliás, a colocação senatorial da necessidade de reforma simplesmente ignora que a Câmara dos Deputados – composta também por parlamentares eleitos – tem projeto próprio de reforma. Ao invés de enriquecer o debate, e somar esforços na busca de uma melhor lei penal, parece simplesmente querer fazer sua vontade, e nada mais.
Independentemente de qualquer consideração ideológica, é de se ver incontáveis vícios dogmáticos no texto final do relatório Pedro Taques. Poder-se-ia falar, aqui, de erros básicos de formulação dogmática. Poder-se-iam mencionar temas como de legalidade, insignificância, omissão, responsabilidade da pessoa jurídica, os quais, sem nenhum partidarismo, podem ser alterados, mas com foco no bom Direito, e não se copiando o que pior e ineficaz existe na realidade nacional e comparada. Na Parte Geral, então, com a tentativa de verdadeira consolidação de leis penais sob vestes de novo Código, trazendo para seu manto todas as leis esparsas, verifica-se o maior dos absurdos. Simplesmente parece-se esquecer que existe uma lógica na utilização de leis apartadas da norma codificada, como, por exemplo, a estipulação de políticas públicas independentes, como é o caso do meio ambiente ou de drogas.
De forma muito mais rica, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a Ordem dos Advogados do Brasil ou o Instituto dos Advogados de São Paulo, entre outros, apresentaram suas objeções pontuais. A Academia, não só de São Paulo, mas de todo o Brasil, também o fez. Apenas para destaque específico, e de compreensão até de um público leigo, mencionam-se, aqui, alguns pontos de absoluta incongruência do texto apresentado.
Teve-se a intenção, por exemplo, de tornar a corrupção crime hediondo. Fala-se, observe-se, unicamente de corrupção ativa e passiva. Medida aparentemente de aplauso, ainda mais em um momento de escândalos emblemáticos, como é de todos sabido, ela tem, em verdade, a capacidade extremamente perniciosa de, ou gerar injustiças gigantescas (com punições por crime hediondo de pequenas e corriqueiras corrupções), ou de tornar a lei simplesmente sem efeito. Pode-se entender que se pretenda combater a corrupção que agride a sociedade. Mas é absolutamente incompreensível, até mesmo por agressão ao princípio da proporcionalidade, que a corrupção rasteira, da esquina, seja tida como hedionda. Trata-se de desrespeito a questão já consagrada.
Aliás, essa é uma constante da proposta apresentada: pretender modificar conceitos já sedimentados, o que vai gerar, durante anos, extremada insegurança jurídica, até que a jurisprudência venha a dar a última palavra sobre um ou outro entendimento.
Em termos de Parte Especial, poderiam ser citados inúmeros outros problemas. Aqui, de se mencionar unicamente dois deles. O primeiro diz respeito a menções específicas de qualificadoras em relação ao homicídio quando este se der em razão de preconceito de raça, cor ou orientação sexual. A medida, que até tem suas justificativas, tem o condão de transformar praticamente toda a conduta homicida em sua faceta qualificada, além de gerar problemas de interpretação significativos. É óbvio que se deve recriminar atitudes subjetivas preconceituosas, mas deve ser entendida a dificuldade de constatação do motivo oculto, sob pena de simplesmente toda a agressão a um cidadão nessas condições, mesmo que não motivada pelas mesmas, venha a ser tida como qualificada. Novamente, aqui, uma agressão aparente a uma proporcionalidade desejada.
É, contudo, em relação a outro crime emblemático que os vícios são ainda piores. No que diz respeito aos chamados crimes tributários, chega-se ao cúmulo de pretender aumentar as figuras típicas em absurda ordem de grandeza, tornando crime até mesmo a simples conduta de traçar planejamento tributário. Além de gerar problemas de toda ordem, essa neocriminalização tem um potencial de, verdadeiramente, paralisar a economia do país, unicamente sob a alegação de que estar-se-ia como que a planejar atitude criminosa.
Tais exemplos denotam o problema fundamental da pressa em uma tão significativa reforma do Código Penal. No exemplo da legislação comparada, extrai-se a lição de que reformas bem feitas não são tocadas de afogadilho. São debatidas, não necessária e unicamente com a população (pois isso pode viciar parcialmente sua leitura), mas também com a comunidade científica, acadêmica e profissional, pontuando-se todos, repita-se, todos os problemas que podem surgir desta ou daquela mudança.
Embora seja absolutamente verdade que o Congresso Nacional tenha a autonomia para propor reformas legislativas, estas, em homenagem ao propósito a que se destinam, devem ser vistas com responsabilidade de Estado. As metas devem ser do Parlamento como um todo – e aqui, leia-se também a inteiração com as propostas da Câmara dos Deputados.
* Renato de Mello Jorge Silveira é advogado e professor titular da Faculdade de Direito da USP e Diretor Escola Paulista de Advocacia do IASP.
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