Geraldo Serathiuk *
Assistimos a crises políticas no período democrático. Alguns as atribuem à questão moral – a exemplo de outras vezes, quando se pensava que a simples aprovação de um Código de Ética resolveria o problema.
Para sair da crise, é proposta, de forma simplista, a punição de alguns e fala-se também da necessidade de se estabelecer a fidelidade partidária, o financiamento público de campanha, o fim das coligações proporcionais, o sistema de listas partidárias, a cláusula de exclusão para os partidos políticos e um sistema eleitoral misto.
Porém, não se fala de dois dos temas mais importantes para a reforma política: a distorção do sistema representativo, pela falta da adoção do coeficiente eleitoral nacional para a eleição dos deputados federais; e a necessidade de tirar do Senado Federal o papel de segunda Câmara revisora, função que agride o estado de direito democrático.
Ora vejamos, o sistema mantido pela nossa Constituição Federal foi o estruturado na ditadura. No caso da Câmara dos Deputados – Casa de representação do povo –, determina que poderá ser eleito um mínimo de oito e um máximo de 70 deputados federais por estado. Não adotando, portanto, a forma de coeficiente eleitoral nacional, que seria o de aproximadamente 220 mil votos para eleger cada deputado federal.
Esse sistema foi estruturado em grande parte no período de arbítrio, com a transformação de territórios pouco populosos e pequenas economias em estados-membros, com intenção de impedir o crescimento da oposição, que vencia nos grandes centros urbanos. Tal opção acabou produzindo uma distorção, pois aproximadamente 44 milhões de eleitores elegem 263 deputados federais e 65 milhões de eleitores elegem apenas 250 deputados federais.
Estados como Acre, Amapá e Roraima, entre outros, elegem deputados federais com um coeficiente eleitoral inferior a 40 mil votos, enquanto outros, como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, elegem seus deputados federais com um coeficiente eleitoral bem superior a 220 mil votos. Tal mecanismo distorce o sistema representativo e não se justifica.
Nos EUA, por exemplo, estados-membros como Alaska, Dakota e Vermont, mais populosos que os nossos estados menos populosos, elegem apenas um deputado federal, pois o país adota um sistema aproximado de coeficiente eleitoral nacional.
O Senado Federal – Casa de representação dos estados-membros – foi ampliado com a transformação de territórios pouco populosos e com pequenas economias. Em tese, deveria ter como atribuição discutir matérias de interesse da União e de conflitos entre as unidades federativas, mantendo o equilíbrio para o desenvolvimento das regiões. Mas, por distorção do sistema representativo, os senadores têm um dos campos de atribuições e competências dos mais amplos do mundo, podendo votar e vetar tudo, como se o Senado fosse uma segunda Câmara revisora.
A forma de impor um mínimo de três senadores por estado gera uma distorção em que, aproximadamente, 45 milhões de eleitores elegem 59 senadores e 64 milhões de eleitores elegem apenas 22. Essa situação é simbolizada na figura do senador eleito com 10 milhões de votos, tendo o mesmo peso de um senador que se elegeu com 300 mil votos. Isso é muito grave, pois campo de atribuição e competência tão amplo acaba barrando a modernização das legislações brasileiras, pois representantes de estados-membros poucos populosos e com economia pequena acabam impondo projetos específicos e locais, às vezes pessoais, em detrimento dos interesses estratégicos da sociedade brasileira.
Diante desse dilema, a reforma política – que seria realmente necessária – vai sendo protelada, e o eleitor brasileiro em alguns estados-membros vale 0,5 voto, enquanto em outros vale 15,4 votos. Não é por acaso o desinteresse pelas eleições, pois a distorção do sistema representativo distancia o representante do representado, comprometendo o sistema democrático. Distanciamento que não será resolvido só com a simples implantação do sistema distrital, como afirmam alguns.
Em função dessa distorção, qualquer presidente da República eleito pelo voto direto, por mais progressista que seja, teve, tem e terá problema de governabilidade. É só ver o caso recente do presidente Lula, eleito com 47 milhões de votos no primeiro turno. Caso tivéssemos o coeficiente eleitoral nacional, ele teria eleito uma bancada de apoio muito maior.
Mas a distorção do sistema representativo fez eleger bem menos, gerando problemas de governabilidade, a exemplo dos enfrentados pelos presidente anteriores, demonstrando a aberração de não adotarmos o coeficiente eleitoral nacional. Resultando naquilo que a ditadura queria: um presidencialismo de coalizão, ou seja, você pensa que está votando num presidente com um programa de governo progressista, mas, nas eleições do Parlamento, a sociedade não percebe que elege um governo de coalizão, às vezes conservador, atrasado e retrógrado.
Foi o que vimos na última eleição. E por isso é difícil governar e implantar políticas públicas voltadas para o povo: por culpa dessa engenharia política deixada pela ditadura e que as oligarquias regionais resistem em mudar. Afinal, ganharam e ganham muito com ela.
Há que se considerar também que a distorção do sistema representativo, estruturado no período de arbítrio para evitar o avanço das oposições progressistas, acabou gerando um custo muito alto para o país manter a governabilidade, pois para garantir a maioria no Parlamento, foram usadas como moeda de troca a criação e a manutenção de inúmeras estruturas públicas desnecessárias nos âmbito federal, estadual e municipal.
Além do mais, acabamos por ter um sistema representativo deformado que ajudou muito na construção de uma dívida interna e externa e um sistema previdenciário que beneficiou poucos. E, por conseqüência, a manutenção de um sistema tributário questionável e uma política de juros que onera o setor produtivo nacional e a sociedade, que são forçados a pagar a conta desta distorção.
Por isso, a sociedade brasileira deve debater a reforma política sob a ótica de um novo pacto federativo, para que se redefinam as atribuições dos senadores, o critério de composição do Senado Federal e inclua a mudança na eleição da Câmara dos Deputados. Não só sob o enfoque da reforma do sistema partidário e eleitoral. Deve-se exigir a implantação do coeficiente eleitoral nacional, de acordo com o fundamento do princípio "um cidadão, um voto". Esse princípio desaguará na reforma do Estado com o objetivo de se construir, verdadeiramente, um Estado de direito democrático e, por decorrência, um novo modelo de
desenvolvimento democrático para todos os brasileiros.
*Geraldo Serathiuk, 50 anos, advogado, é especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos (IBEJ-PR), onde defendeu a tese da inviabilidade da reforma tributária em razão do sistema político representativo deformado.
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