Andrea Vianna
O presidente Lula disse repetidas vezes que “não sabia de nada”. Mas de uma coisa ele sabia. Até profetizou, na entrevista concedida em novembro passado ao programa Roda Viva: “O mensalão vai virar refrão de Carnaval”. E virou! Este vai ser, em todo o país, o “Carnaval do mensalão”. O povo vai cantar marchinhas, sambas e pagodes com letras ferozes e versos infames brincando com a maior decepção do brasileiro de um ano para cá: as denúncias de corrupção que atingiram a gestão Luiz Inácio Lula da Silva.
“As marchinhas são ótimos veículos de crítica social. É a chance que a gente tem de falar do mensalão, da insegurança, de tudo", afirma o produtor cultural, ex-Asdrúbal Trouxe o Trombone e presidente da Fundição Progresso no Rio de Janeiro (RJ), Perfeito Fortuna, que promoveu um concurso de marchas carnavalescas.
“Me dá um mensalão/ Meu mensalinho não tá dando conta não”, extravasam os versos do compositor catarinense Zinho, autor da marchinha Também quero um mensalão. “Eu posso até encarar uma CPI/ Eu não tô nem aí/ Eu quero é o faz-me-rir”.
A música arrebatou o primeiro lugar do Concurso de Músicas de Carnaval da Prefeitura de Florianópolis (SC). “Não posso mais chamar a mulher de bem/ Se não o banco toma, pois dinheiro não tem”, brinca o compositor, que acabou levando para casa um “mensalinho” de R$ 1,8 mil pelo primeiro lugar na competição.
Constrangida ficou a líder do PT no Senado, Ideli Salvatti (SC), que participou da solenidade de premiação realizada no último dia 11, no Mercado Público da capital catarinense. Combativa defensora do PT e do governo Lula, ela se esquivou de entregar o troféu ao vencedor do concurso, missão de que ficou incumbida ao aceitar o convite da prefeitura para participar da festa. A senadora deu o prêmio ao segundo colocado e deixou a cerimônia à francesa.
A indignação popular escrachada em versos também rendeu embaraços a políticos petistas no Norte do país. A festa de lançamento da camiseta oficial do bloco Vai quem quer, em Porto Velho (RO), realizada na última semana, foi embalada pelos versos da marchinha Do cuecão ao mensalão, a banda é a solução.
A letra resgata, com humor, o episódio do assessor do deputado estadual José Nobre Guimarães, presidente do PT cearense e irmão do ex-presidente nacional do partido, José Genoino. O assessor José Adalberto Vieira da Silva foi preso no aeroporto de São Paulo com a cueca recheada de dólares. Na festa, estavam presentes o prefeito Roberto Sobrinho, do PT, e boa parte de seu secretariado. Na onda do “vai quem quer”, muitos foram embora contrariados.
Catarse popular
“A marchinha de carnaval é a catarse popular. Ela vai muito além dessa crítica especializada, dessa pretensa inteligência das colunas de jornais. A marchinha é a voz do povo”, afirma Perfeito Fortuna.
Certo de que as marchinhas nunca deixaram de habitar o inconsciente coletivo e que o inchaço dos blocos de carnaval do Rio, como o Boitatá e o Bola Preta, que reuniam pequenas multidões nos arredores do bairro da Lapa, perto da Fundição, Fortuna decidiu realizar o 1º Concurso Nacional de Marchinhas da Fundição Progresso.
A final foi transmitida pelo programa Fantástico, no dia 12 de fevereiro. Na categoria marchas tradicionais, os finalistas foram Eduardo Dusek, com Ô Pitanguy; Nelson Sargento, com uma nostalgia de carnavais antigos, Confete e Serpentina; e Homero Ferreira, autor de Me Dá Um Dinheiro Aí, com Milagre do Viagra, que levou o troféu Emilinha Abóbora da competição.
Como prova da criatividade ilimitada do brasileiro e de sua capacidade de rir das próprias tragédias, entre as 601 marchas inscritas na competição, pelo menos metade falava de política e corrupção. O presidente da Fundição ressalta que são composições assinadas por novos e veteranos autores, de todas as gerações e níveis de escolaridade.
“É Carnaval é/ É Carnaval é/ É o careca de chupeta/ Carregando a mala preta!”, desfiam os versos do Melô do Mensalão, de Grimall Dantas, uma das concorrentes que se inspiraram na crise política.
“O exercício da crítica dá mais poder ao povo. O Carnaval tira a gente da passividade. Quando você sai vestido de Marcos Valério, de ladrão, de político corrupto, você se expressa de um jeito criativo para exorcizar toda essa desgraça”, analisa Perfeito Fortuna.
A marcha Mamá nas Tetas, de Adeilson Maria da Silva, é outra que brinca com a história dos dólares na cueca. “Na mão não levo nada/ Por que/ Eu não sou trouxa/ Minha sunga é pequena/ E minha calça é muito frouxa”.
Já Divina providência, de Maricéa Martins Zwarg, faz uma prece pedindo honestidade aos detentores do poder, enquanto reclama da miséria do brasileiro em contraste com a fartura dos beneficiados com o mensalão. “Ai, ai, ai, o meu bolso tá furado!/ Ai, ai, ai, já não dá nem pro feijão!/ Enquanto isso aquela turma lá do ‘alto escalão’/ Vai de champanhe, caviar e mensalão!”
O concurso ainda rendeu uma marchinha inspirada na reação de um brasileiro indignado, que desceu a bengala no ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, apontado como um dos operadores do mensalão. A Marcha da Bengala, de Jason Barbosa dos Santos, induz todos a desfecharem bengaladas para todos os lados. “Mete a bengala nessa turma da CPI/ É hora de botá esses corruptos na rua”.
Para a música Voto Direto, de Marcos Vinicius Souza Lima, o problema foi que o povo não soube escolher direito. “Mas quem mandou votar no homem?/ Quem mandou votar no homem?/ Se correr o bicho pega/ Se ficar o bicho come”. Em tom de desesperança, o compositor não vê saída para o povo brasileiro: “E o mandato está acabando/ E eu não vejo a solução/ A cada dia que passa/ Surge mais um mensalão”.
Mas o presidente da Fundição Progresso enxerga a saída no próprio Carnaval, que, para ele, é a festa do povo. “A corrupção no poder é a morte. Eu quero é viver. Por isso, o Carnaval é a solução pra gente viver de fazer alegria”, conclui.
Sarcasmo recifense
Nas ruas de Recife (PE), o sarcasmo e a ironia despontam com abundância dos versos do Quanta Ladeira, bloco criado há nove anos pelos músicos pernambucanos Lenine, Lula Queiroga e Zé da Flauta, que reúne, em média, 20 mil foliões no dia da concentração. Músicos como Moraes Moreira, Pedro Luís (da Parede) e Paulinho Moska somam-se à folia todos os anos. Este ano, o bloco se apresentou na última quinta-feira, dia 23. Os ingressos, a R$ 10, foram vendidos em meia hora.
A principal característica do Quanta Ladeira é compor versos para melodias já conhecidas. Com a marcha-rancho Máscara Negra, eles substituíram os “mil palhaços no salão” pela figura do ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Ficou assim: "Eu tô rico, eu tô rindo à toa/ Mais de mil Paloccis no salão/ Já voei pelo Oriente/ E pela América Latina/ A bordo do Sucatão".
“A gente não se prende a um só tema, não somos monoteístas. O que fazemos é brincar, porque o Carnaval é uma celebração. Mas com essa overdose de notícias sobre política e corrupção, resolvemos também mexer com isso. Mas também temos versões de músicas dos Bee Gees, em ritmo de samba e pagode”, explica Lula Queiroga.
Ano passado, o bloco brincou com música de um outro bloco famoso de Pernambuco, o Galo da Madrugada, e criou o Hino do Galo para o ex-marqueteiro presidencial Duda Mendonça: “Ei pessoal, vem moçada, pegaram o Duda Mendonça com o galo da madrugada”.
Em 2006, por incrível que pareça, o presidente Lula será poupado, embora seja a hora e a vez da folia do mensalão. “Este ano a gente deu um gelo no presidente Lula”, diz Queiroga. Mas no ano passado, o Quanta Ladeira bateu em cima da suposta adoração do presidente por umas doses de cachaça.
“Você diz que Lula bebe/ Lula bebe sim senhor/ Também nessa porra quem não bebe/ Não bebe pra ser vereador/ Meu amor/ Bebe todo o ministério/ Bebe o secretariado/ E o povo do Senado”.
“Carnaval é quando a gente tem licença para falar sobre qualquer coisa, sobre o que quiser. Não dá é para extrapolar fora do Carnaval. Senão a gente incorre no Código Civil, no Código Penal e vai preso por formação de quadrilha”, brinca Queiroga.
Este ano, segundo o músico, o Quanta Ladeira veio mais filosófico. “Criamos uma versão sobre uma música do Pink Floyd, dizendo ‘Quero um homem/ Quero um homem de bem …’”
Fantasias
Além de cantar as músicas satíricas, o povo vai extravasar a indignação vestindo fantasias de seus personagens favoritos da crise política. No Rio de Janeiro, o empresário Armando Valles, dono da fábrica Condal, que vende sua produção para todos os estados brasileiros, lançou uma série completa de máscaras de políticos envolvidos direta ou indiretamente no escândalo do mensalão. Tem versões dos deputados cassados Roberto Jefferson (PTB-RJ) e José Dirceu (PT-SP), do ex-presidente do PT José Genoino e do mais ilustre ex-anônimo de todo o escândalo, o empresário Marcos Valério de Souza.
Valles estima que 100 mil máscaras de políticos tenham sido comercializadas para as principais cadeias varejistas do país. Do time de políticos do mensalão, o carioca Roberto Jefferson lidera o ranking de máscaras mais vendidas, nas versões com e sem olho roxo, lançadas desde setembro. O presidente Lula, que já foi retratado de cabelos pretos e expressão sisuda da fase de sindicalista, ressurge em nova versão, com cabelos grisalhos e sorriso generoso. Outra forte concorrente na preferência dos foliões é a máscara do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti (PP-PE), que renunciou ao mandato depois de ter se comprovado que ele recebeu propina de um fornecedor da Casa.
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