Da Redação da Agência Pública
Foi dia de casa cheia. No último sábado, 9 de abril, cerca de cem pessoas estiveram na Casa Pública em Botafogo, Rio de Janeiro, para ouvir uma conversa necessária sobre a cobertura do impeachment. De um lado, Eugênio Bucci, pensador e jornalista, professor da Universidade de São Paulo e diretor da edição brasileira da Columbia Journalism Review; do outro, Laura Capriglione, uma das mais conhecidas repórteres brasileiras, que depois de ter passado por veículos como Folha de S.Paulo e Veja, abraçou o jornalismo independente, tendo fundado a organização Ponte e o coletivo Jornalistas Livres, do qual é uma das principais vozes.
São visões dissonantes, em alguns pontos opostas, sobre o papel que a mídia tem cumprido na evolução do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Durante a Conversa Pública, ambos foram entrevistados pela jornalista Tatiana Farah, ex-repórter do Globo e colaboradora da Pública – e pelo público presente. Uma conversa e tanto.
A seguir, alguns trechos dos pontos abordados pelos nossos entrevistados,
Tatiana Farah – Como este momento da imprensa vai ser visto daqui a 20 anos?
Laura Capriglione – Nós estamos vivendo um momento de crise profunda na imprensa tradicional. Sabemos que no Brasil temos uma concentração de mídia que afeta um direito humano básico que é o de manifestação e expressão. Só que nunca isso foi tão evidente. Na época da ditadura, a gente tinha os jornais da imprensa alternativa, que eram chamados de imprensa nanica. Hoje em dia, a gente tem uma multiplicação de audiências absolutamente impressionantes. As pessoas descontentes com as narrativas que elas acham tendenciosas estão buscando outras coisas. É isso que explica o surgimento de tantos coletivos novos.
Quando eu trabalhei na Veja, a Veja falava, e eram as tábuas da lei. Hoje em dia, sai a Veja, mas vem junto um ponto de interrogação imenso. E não é uma coisa que o PT desconfia, é mais do que isso. É a periferia, é a favela que não se sente representada. Sem entrar no mérito se é justo ou não, o fato é o seguinte: ninguém tem o direito mais de ler o jornal ingenuamente. Cada um de nós é um ombudsman, um superego, é um crítico.
Eugênio Bucci – A eficácia da direção de uma grande rede, de um grande jornal, em surtir um efeito de concordância na sociedade ficou muito relativizada. O poder do aparato dos meios de comunicação de sonegar uma informação para o público é muito menor hoje. Mesmo que as chamadas publicações fora do mainstream não tenham muita credibilidade, elas têm credibilidade suficiente para dar um grito, para dizer “olha, tem alguma coisa de errado ali”. E isso atrai a atenção da sociedade, e isso distorce a intenção original de cobertura dos grandes veículos. Eles não falam mais sozinhos.
Tatiana Farah – Mas isso não diminui a importância, por exemplo, de um Jornal Nacional colocar 40 minutos sobre Lula e os grampos e dizer que não tem tempo para falar sobre a lista da Odebrecht que fala dos demais partidos. Você avalia, por exemplo, a imprensa como um ator desse movimento pró ou anti-impeachment, e que peso ela tem?
Eugênio Bucci – Eu vi em certos momentos do Jornal Nacional – não tenho elementos para dizer se é intencional ou não – uma tendência em reforçar o lado que fala pelo impeachment. Dou um exemplo técnico: quando foram divulgadas as gravações ilegais, a meu ver. A legalidade daquilo era no mínimo discutível. E em vários momentos houve em vários veículos, inclusive da Globo, uma insistência em dizer que era legal, a despeito da controvérsia. Ao mesmo tempo, eu me lembro de ter visto no Jornal Nacional o Chico Buarque falando “de novo não, não vai ter golpe”. Eu me lembro de ter visto o ministro José Eduardo Cardozo falando. Vamos lembrar que 20 anos, 30 anos atrás não era assim. Esse dever de pelo menos procurar o equilíbrio penetrou na elaboração desses jornais.
Laura Capriglione – Eu já acho que não precisamos de tanta firula pra admitir que o Jornal Nacional é uma peça de propaganda do impeachment, é uma peça de propaganda de criminalização do PT, do Lula, da Dilma. É uma coisa grotesca aquela transmissão daquela gravação, o William Bonner e sua parceira falando “e aí eles pronunciaram um palavrão”. É uma coisa grotesca, no sentido de exatamente tratá-los como pessoas grosseiras, toscas… Os jornalistas, aliás, são uma das categorias mais mal-educadas que existem. Quem já trabalhou numa redação sabe a quantidade de palavrões que se fala. E de assédio moral que há. Isso é uma hipocrisia. Desde o início dessa cobertura, há uma assimetria nos tratamentos, que, para mim, é o principal. Você tem um cara que foi pego com conta na Suíça, e que… ele é “só” o presidente da Câmara. Como assim? Ele é o chefe de um dos poderes da República!
A direita foi para as ruas em março do ano passado e foi muito mobilizada. Aquela primeira manifestação da direita era sensacional, porque todas as tomadas eram aéreas. Os Jornalistas Livres tinham surgido naquela semana e, até por causa do susto que a gente tomou, decidimos fazer jornalismo daquele jeito que a gente sempre fez. Vamos a pé, entrando na manifestação e perguntando para as pessoas por que estão ali. E você tinha cinco carros alegóricos pedindo intervenção militar já. Vocês viram isso na Globo? Não viram. Agora, você falar que você viu o ministro Cardozo na Globo… Sim, porque, se não tiver o mínimo do contraponto que seja, as pessoas vão embora, porque as pessoas já estão indo embora para ver os 10 Mandamentos.
Tatiana Farah – Essa é a primeira vez que a gente tem uma investigação judicial cujos dados são abertos desde o início, é a grande novidade do juiz Moro. Às vezes ele coloca o testemunho dos acusados no mesmo dia. Isso não deixou os repórteres um pouco mal-acostumados e está faltando um pouco de investigação, sair pra colher dado, cruzar informações?
Laura Capriglione – Eu acho que o problema mais grave é que nós estamos jogando no lixo as garantias individuais. Vocês não pensem que, quando uma notícia é publicada no Jornal Nacional, as pessoas vão pensar: “Isso aí é um depoimento, ainda haverá todos os contraditórios, e todo mundo é inocente até que se prove o contrário”. Não é essa a mensagem que está sendo passada. Cada uma dessas delações é uma condenação, é um carimbo de corrupto que você põe na testa do cara. Quando teve a Operação Mãos Limpas na Itália, que é a grande inspiração do juiz Sergio Moro, ele escreveu um texto que é uma das peças mais sensacionais, todo mundo tem de ler (veja aqui o link). Ele vai falando quais eram os problemas e como a Mãos Limpas tinha funcionado. E fala que você tem que vazar porque as denúncias deixam o cara acuado e o cara perde a capacidade de se defender. Agora, eu lutei para este país ter uma democracia justamente para que as pessoas pudessem se defender. Quando a Justiça está se comportando de uma maneira justiceira e você simplesmente põe um alto-falante para isso, você está apoiando o ponto de vista justiceiro.
Eugênio Bucci – Não estou discordando do que a Laurinha está falando, mas eu quero problematizar uma passagem, que é a manipulação. Nós precisamos prestar atenção ao poder real dos meios de comunicação de manipular de fato o comportamento da sociedade. Quando a gente imputa a um programa, um jornal, uma responsabilidade sobre isso, está dizendo que, em função daquilo que foi publicado, o país foi naquela ou para aquela outra direção. Isso acontece? Se o poder de manipulação fosse real, não estaríamos vendo tantas manifestações, às vezes até em apoio ao governo. Será que se a manipulação fosse tão eficaz, ela aconteceria?
No tempo das diretas-já, era muito pior, porque não havia nem internet nem celular. E não aparecia na televisão. No Jornal Nacional do dia 25 de janeiro de 1984, se diz que o comício das diretas era um capítulo das comemorações de aniversário de São Paulo. E no final da reportagem há uma mensagem à campanha pelo voto direto. Não obstante, as pessoas foram para as ruas, e a campanha aconteceu.
Hoje, o país inteiro discute isso, o país inteiro duvida da imprensa. Então a manipulação, eu questiono, não funciona desse jeito.
O segundo ponto que eu queria lembrar sobre a cobertura da Lava Jato é que é um processo muito salutar para o Brasil. Há momentos de abuso, mas de um modo geral isso está escancarando coisas. Assim como as pessoas têm dúvida em relação à imprensa, hoje elas têm dúvida em relação às autoridades. O PT nunca apresentou um balanço aberto, real, do que aconteceu no mensalão! O presidente Lula, cuja figura eu respeito, não explicou a situação daquele sítio de Atibaia. Essas perguntas ficam na cabeça das pessoas. Agora, o governo se pôr no papel de vítima é uma coisa que deveríamos questionar, porque estamos falando de um governo que está aí há quase 14 anos. Como é vítima? Eles são o poder! Eu já escrevi sobre o preconceito de classe contra o Lula, não retiro uma linha do que eu escrevi. Mas hoje o Lula não é um retirante, é um milionário, leva uma vida de milionário e deve também explicações para o país.
Flora, aluna de jornalismo da UFRJ – Vocês são pessoas que foram estudantes em 1964, eram da grande mídia nas diretas-Já e agora estão fora, e estão fazendo a crítica da mídia. O que acontece entre a universidade e a redação para que essa crítica não seja feita dentro da redação?
Laura Capriglione – Na redação da Folha, quando eu comecei, era uma virtude muito valorizada o que se chamava de “ter uma ampla biodiversidade”. Eu acho que houve nas redações uma uniformização muito maior do perfil do jornalista. Todos estudaram em escolas A, B, C, D, trabalharam em ONGs assim e assim… E existe o hábito de premiar com bolsa para Nova York, com prestígio, aquele jornalista que tem maior afinação com a direção do jornal. Isso junto com o enxugamento das redações, as pessoas trabalhando no limite… As pessoas têm pouco tempo para pensar. O que se traduz numa angústia brutal. Eu muitas vezes recebo ligações de caras que estão dentro das redações e falam: “Eu não aguento mais”. E ainda agora você tem medo de ir a manifestações e o cara jogar uma latinha de refrigerante na sua cabeça.
Significa que o outro lado está bom? Não, eu acho que esse outro lado tem que melhorar tudo. Sou uma das pessoas mais críticas em relação a essa contranarrativa que está sendo feita pela mídia independente. É amadorística, é ainda precária, domina pouco os termos técnicos da cobertura jornalística. Tem vários problemas. Mas ela está sendo bombada por quem não está se sentindo representado. Na semana passada, nós, Jornalistas Livres, atingimos a bagatela de 18 milhões de timelines. Pô, é gente pra caramba!
Tatiana Farah – Só vou fazer uma pergunta de sim ou não para o Eugênio porque a Laura já se posicionou. É golpe?
Eugênio Bucci – Olha… [risos]. Este é um desses momentos que não basta o “sim” ou “não”, e eu acho que um dos problemas da nossa imprensa tem sido buscar o sim ou não quando não é. O sentido clássico do termo “golpe” na teoria política é você fazer terra arrasada do marco legal e instaurar outro a partir da força. Mais recentemente, surgiu uma figura que pode ser chamada de golpe institucional ou “golpe constitucional”. Dentro das regras estabelecidas, você cria um golpe que, embora formalmente seja feito dentro das regras, golpeia a expectativa de direito posta naquele ordenamento. Por isso, a resposta é difícil. O impeachment é previsto na Constituição com crimes descritos, é previsto o crime de responsabilidade, e existe uma argumentação de boa-fé falando que pedalada fiscal é, sim, crime de responsabilidade previsto na legislação. Agora, se aquilo valer para presidente da República, teria que valer para uma série de governadores e antecessores. Então tem uma questão de gradação. Isso, se levado ao extremo, pode se consumar num desastre institucional para nós, porque vai banalizar a figura do impeachment, porque aí entra o Temer, daí derruba, daí entra outro… Mas eu também acho que há uma enorme banalização desse negócio ̶ “golpismo, golpismo” ̶ que pode empobrecer a discussão e até frustrar as massas mais adiante.
Tatiana Farah – Então foi “não”, né, Eugênio?
Eugênio Bucci – Um golpe, nos termos clássicos, não é. Não dá para falar que é como 1964. O problema não é esse. O problema é que, se não houver uma demonstração cabal de crime de responsabilidade, nós poderemos produzir um cenário de desastre.
Caetano, jornalista independente – Eu estive na semana passada trabalhando pela primeira vez dentro do Congresso como jornalista independente e percebi uma dificuldade muito grande nas minhas perguntas para alguns dos líderes desse processo. Por exemplo, Romero Jucá, Eduardo Cunha. Eles tinham uma defesa que me enrolou e me engoliu todas as vezes. Como é que faz para entrevistar essa gente?
Eugênio Bucci – Sabe como você entrevista o Romero Jucá, o Renan Calheiros, a Dilma Rousseff, o Lula? Com um profissional que tenha a mesma bagagem do que eles. Nós precisamos de jornalistas experientes. O jornalista precisa estudar a vida toda, ele tem prática, ele tem escola, ele tem vivência e ele consegue olhar para um desses caras de igual para igual. Se você não tem uma redação que mantém os seus jornalistas experientes, você não tem como cobrir o poder olhando de igual para igual.
Laura Capriglione – A gente gosta de imaginar que vai chegar lá na entrevista e o cara vai falar uma abóbora. Não é assim. O espaço da entrevista é o espaço do entrevistado. O espaço da entrevista é muito isto: é você conseguir capturar o cara numa armadilha que ele mesmo monta para ele, porque ele é vaidoso, quer se exibir para o jornalista. Mas não adianta o cara ser vaidoso. Tem que ter um jornalista que vai fazer um milhão de entrevistas, cruzar um milhão de informações, cruzar isso tudo, pôr no forno. O jornalismo ainda é uma profissão que dá muito trabalho.
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