Lúcio Lambranho
A juíza Isa Tânia Cantão, da 13ª Vara Federal, em Brasília, suspendeu a anistia de mais de 7 mil entidades filantrópicas, determinada pelo governo em novembro de 2008, com a publicação da Medida Provisória 446, a “MP das Filantrópicas”. Todas as instituições beneficiadas com a medida, que estão sob investigação ou aguardavam renovação dos certificados, terão o valor das isenções fiscais obtidas inscritas na dívida do INSS pela Receita Federal. A decisão tomada na sexta-feira (3) atende a pedido do Ministério Público Federal, que ajuizou uma ação civil pública em dezembro do ano passado.
Na liminar à qual o site teve acesso com exclusividade, a juíza não poupa críticas à edição da medida provisória e diz que o governo deu um “cheque em branco” às beneficiadas com isenção de impostos. Só com a cota patronal do INSS, as filantrópicas têm uma isenção de R$ 2,1 bilhões, segundo os cálculos da Receita.
A magistrada também considerou os dados do acórdão 292/2007 do Tribunal de Contas da União (TCU). Nesse relatório, os técnicos do TCU revelam que não há uma fiscalização sobre as filantrópicas e que isso “pode privilegiar o ambiente de impunidade”.
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“A fiscalização das imunidades é tão importante não apenas em termos arrecadatórios (imunidade superior a 1 bilhão de reais), mas também, no contexto de fragilização que circunda a política de assistência social do país. A ausência de procedimentos regulares de fiscalização nas Entidades Beneficentes de Assistência Social pode privilegiar o ambiente de impunidade”, diz a investigação do TCU.
Diante do valor das imunidades e do número de entidades certificadas em todo o país, o TCU também constatou que a Secretaria da Receita Federal não tem condições de fiscalizar o setor. “Dos dados apresentados depreende-se que a SRF não possui contingente específico de fiscais voltados à fiscalização de imunidades de impostos relacionados a hospitais, escolas, faculdades e universidades. Outrosim, não há procedimentos regulares de fiscalização nessas entidades, pois as ações fiscais originam-se exclusivamente de indícios de irregularidades”, avalia o relatório.
Alegações do governo
No processo, o governo alegou que o assunto não poderia sequer ser tratado pela Justiça Federal, mas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Baseada em ações do próprio STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a juíza rejeitou a tese da Advogacia Geral da União (AGU).
“O manejo do da ação civil pública é cábivel sempre que houver potencial ofensa ao patrimônio público e social”, sustenta a liminar de Isa Cantão. Além de questionar a competência da juíza, a AGU afirma que a renovação dos certificados não garante às entidades beneficientes “o gozo da isenção das contribuições previdenciárias”. “À guisa de conclusão, afirmou que não houve renúncia fiscal pelo fato de não ter sequer havido a constituição do crédito tributário”, informa a juíza sobre o resumo das alegação técnicas do governo.
Mas Isa Cantão contesta os dois argumentos e ainda faz um alerta sobre o risco de o governo perder a possibilidade de cobrar das entidades que cometerem irregularidades com o passar do tempo.
Cobrança reduzida
Isso porque o artigo 45 da Lei 8.212/91 estipulou o prazo de dez anos para que o INSS cobrasse os créditos da seguridade social que não tivessem sido recolhidos espontaneamente pelos contribuintes. Esse período é conhecido como prazo de decadência.
Mas uma interpretação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), já acolhida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, reduz esse prazo para cinco anos, conforme prevê o Código Nacional Tributário. Isso abre espaço para o perdão de uma série de dívidas.
“Como visto, a União alega, de um lado que não há possibilidade de dano aos cofres públicos porque o Fisco está sempre alerta. De outro, reconhece a ameaça de decair do direito de cobrar contribuições devidas por entidades beneficientes e o execesso de processos a serem examinados”, diz a juíza.
“Encontrou a solução para as dificuldades na emissão de um cheque em branco, consistente na concessão/renovação a todos os pretendentes”, dispara Isa Cantão.
Estão sob o risco de cair pela decadência, segundo os dados do próprio governo na ação, 1.274 processos de renovação de certificados em tramitação no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e “cerca de 380 recursos interpostos perante ao Ministro de Estado da Previdência Social”. Todos esses processsos também foram anistiados pela MP 446.
Crise mundial
A titular da da 13ª Vara Federal vai além nas críticas e classifica no texto que o ato do governo é “lesivo aos cofres públicos”. Isa Tânia Cantão também faz referência à crise econômica na mesma liminar. “Creio que a rejeição da medida provisória, sob o argumento de ausência de requisitos fixados na Constituição não disfarça a repulsa a um ato, que se confira lesivo aos cofres públicos, o que tornar ainda mais censurável, por ocorrer, neste momento, em que milhares de brasileiros são penalizados com o desemprego e a desesperança”.
A magistrada já tinha dado uma liminar favorável a uma ação popular que questionava o certificado de filantropia de uma entidade do Rio de Janeiro.
Luiz Marinho
A ação do MPF foi provocada depois que reportagem do Congresso em Foco, publicada em 17 de março de 2008, denunciou a intenção do governo em conceder anistia às entidades filantrópicas. O então ministro da Previdência, Luiz Marinho, tentou promover esse mesmo modelo de anistia por meio de projeto de lei. O documento obtido com exclusividade pelo site mostrou que a proposta previa a extinção de centenas de recursos do INSS e da Receita Federal que pediam o cancelamento dos certificados, concedidos irregularmente pelo CNAS.
Tratava-se da nota da consultoria jurídica do Ministério da Previdência Social (MPS) nº 070-2008, assinada pelo advogado da União Daniel Demonte Moreira, pelo procurador federal Felipe de Araújo Lima e pela consultora jurídica do Ministério da Previdência, Maria Abadia Alves, nomeada por Marinho.
De acordo com a nota, o artigo 34 do anteprojeto de lei pretendia “prestigiar” todas as decisões dos conselheiros do CNAS. O item 14 da nota afirmava que “o art. 34 extinguia os recursos” sob a análise do ministério. “Assim, o Poder Público está abrindo mão dos seus próprios recursos administrativos e prestigiando as decisões do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS”.
Com a publicação da reportagem, Marinho recuou e retirou esses artigos do anteprojeto antes de enviá-lo ao Congresso. Mas o governo resolveu retomar esse processo com a justificativa de que devia “zerar” o passivo das entidades filantrópicas e editou a MP 446. Em muitos casos, ações da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) já cobram na Justiça a devolução da isenção concedida irregularmente pelo CNAS às entidades beneficentes.
A ação do MPF, na qual foi baseada a decisão da juíza, faz menção à reportagem do site:
“Com a divulgação dessa notícia pelo site de notícias Congresso em Foco (Previdência propõe anistia para filantrópicas irregulares), o Governo alterou o que seria o Projeto de Lei nº 3.021/2008, aparentemente desistindo de arquivar os recursos administrativos contrários às decisões finais dos CNAs [Conselho Nacional de Assistência Social, órgão responsável pela emissão dos Cebas – Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social]. E assim o PL nº 3.021/2008 seguiu para o Congresso Nacional, sem o dispositivo e sem o pedido de urgência”, diz trecho da ação civil pública.
Fim da força-tarefa
Sem alarde e por meio de uma portaria do Ministério da Previdência Social, o governo interrompeu o trabalho da força-tarefa que investiga, há pelo menos cinco anos, irregularidades nas entidades filantrópicas. Com a decisão do ministro da pasta, José Pimentel, publicada no Diário Oficial da União do dia 3 de março, três auditores da Receita Federal tiveram que retornar para seus estados de origem.
Na prática, A decisão dificulta a continuidade das investigações que culminaram há um ano com a Operação Fariseu, executada pela Polícia Federal e pelos procuradores da República do Ministério Público Federal no Distrito Federal.
Processos parados
A lista de processos parados nos ministérios mostra recursos do INSS contra universidades, colégios privados e hospitais de referência no país. Enquanto os recursos não são julgados, e os Cebas não são anulados, as entidades continuam tendo a isenção de contribuições da seguridade social.
Nesses casos parados, o INSS pede a retirada do certificado das entidades, por considerar que elas não são prestam atividades de beneficência ou porque elas não atenderam aos requisitos do Decreto 2.536/98, que trata do assunto.
Ao todo são 11 requisitos. O principal deles é o que obriga as instituições a oferecem, pelo menos, 20% de serviços gratuitos nas áreas de educação e assistência social e 60% na área de saúde. Os percentuais são calculados sobre a receita bruta das entidades. Fraudes ou inclusão de serviços, que não são considerados filantropia para se atingir esses percentuais, são comuns entre os processos adormecidos no Ministério da Previdência.
O certificado é importante para as entidades beneficentes de assistência social porque possibilita a isenção de impostos e contribuições – como a cota patronal do INSS, a Cofins e o PIS. O título também permite receber recursos públicos, isenções de tributos estaduais e municipais. Os valores de renúncia tributária nesses casos poderiam custear a saúde, previdência e assistência social da população, mas seguem sendo usados por entidades que, segundo os auditores, não cumprem a lei.
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