Rudolfo Lago*
No final de novembro do ano passado, o ministro das Relações Institucionais e Articulação Política, Tarso Genro, convidou a cúpula do Movimento PT – tendência liderada pelo hoje presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (SP) – para uma reunião. Tarso foi direto ao ponto: propôs ao Movimento PT que se incorporasse a ele na criação de uma nova corrente dentro do partido. “Desculpe, Tarso, mas isso não faz sentido”, respondeu Chinaglia. “Nós já somos uma tendência”.
Àquela altura, o Movimento PT, grupo que tem cerca de 14% do domínio do partido, já articulava uma aliança tática com o campo dominado pelo ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, que também estendia seus domínios aproximando-se da ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy e do grupo liderado pelo terceiro vice-presidente do PT, Jilmar Tatto. Algumas semanas depois do encontro com Tarso, Arlindo Chinaglia anunciou a sua candidatura à Presidência da Câmara, alavancado pelos comandados de José Dirceu.
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O episódio narrado acima, que até então mantinha-se oculto nos bastidores, foi um dos momentos decisivos dos últimos rounds da luta que José Dirceu e Tarso Genro protagonizam no interior do PT. Disputas e discussões em torno dos rumos que o partido deve tomar são coisa comum no PT desde a sua fundação. A novidade é que, desta vez, a briga não é entre as várias tendências que existem dentro do partido. Ela acontece dentro da própria cúpula petista. Dentro do Campo Majoritário, a corrente que comanda o PT há mais de dez anos e que domina cerca de 44% das estruturas de poder do partido.
A unidade obtida por essa cúpula e a amplitude do comando que ela conseguiu exercer sobre o PT é um dos fatores fundamentais da construção da chegada do presidente Lula ao poder em 2002. Poucos mais de um mês depois do início do segundo mandato de Lula, essa unidade agora está quebrada.
Durante a semana, o presidente procurou botar uma pedra em cima da disputa. Ele até pode ter refreado os impulsos fratricidas mais agudos de Tarso e Dirceu. Pode ter adiado os momentos mais sangrentos para mais adiante. Mas a verdade é que, ainda assim, a briga continuará no mínimo latente. E voltará mais cedo ou mais tarde (e muita coisa indica que mais cedo).
Se foi a unidade que produziu a enorme hegemonia do Campo Majoritário e de seu modo mais moderado de pensar, levando Lula a se eleger, é bastante provável que o fim dela possa acabar comprometendo a tranqüilidade do presidente em seu segundo governo. O que vem se dando no interior do PT está longe de ser sinceramente um debate de idéias, como a produção de documentos para discussão na semana passada pode fazer crer. É uma luta mesmo por poder. Um lado briga para ultrapassar o desgaste que os escândalos do ano passado geraram e permanecer no comando. O outro – que eleitoralmente já cresceu após esse desgaste – busca valer-se do fato de ter passado à margem dos escândalos para crescer no vácuo que imagina ter ficado. O episódio contado no primeiro parágrafo mostra como cada um trabalha arduamente nos bastidores para arregimentar seus aliados.
Na verdade, Tarso tem um comando pequeno sobre o partido. Tido como alguém que age de forma muito independente, ele perdeu mesmo boa parte da influência que tinha sobre o PT do Rio Grande do Sul, quando disputou internamente com Olívio Dutra a candidatura ao governo do estado e os petistas acabaram perdendo a eleição para Germano Rigotto, do PMDB, em 2002.
Tarso, porém, é um dos melhores formuladores do PT. E não tem medo de dizer o que pensa. Por conta dessas características, foi sendo alimentado por petistas de fora de São Paulo que, realmente, têm força de comando sobre parcelas do partido, como . O ministro vem sendo respaldado pelos governadores de Sergipe, Marcelo Déda, pelo prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, pela governadora do Pará, Ana Júlia Carepa, entre outros.
O grupo passou a articular uma troca de comando sem troca de tendência. Vencedores em seus estados enquanto a cúpula paulista atolava-se nas denúncias do mensalão, percebiam que tinham a oportunidade de conseguir uma ascensão que o domínio de Dirceu sempre sufocara. Nesse plano, a adesão do Movimento PT seria fundamental. O grupo de Chinaglia vinha sendo o fiel da balança no partido, ora pendendo para o Campo Majoritário, ora para as esquerdas. Que, somadas, representam cerca de 40% do PT. Se puxassem o Movimento PT, os não-paulistas podiam dar o golpe que pretendiam em Dirceu.
O problema é que a articulação imaginada ameaçava outros interesses, de paulistas do comando do partido que, até então, não eram tão alinhados a Dirceu. Na disputa pela presidência da Câmara, associou-se à guerra interna petista uma disputa na base do governo. Fazendo um raciocínio semelhante ao dos não-paulistas, o PSB e o PCdoB imaginaram que poderiam tomar dentro do governo espaços que estavam com o PT, agora desgastado pelas denúncias. Habilmente, Dirceu valeu-se dessa ameaça para rearticular o seu domínio.
A candidatura de Chinaglia – alguém que, como secretário-geral do partido, costumava fazer contraponto a Dirceu quando ele era o presidente do PT – não foi idéia de Dirceu. Mas o ex-ministro rapidamente a encampou. E, com os contatos e poder que acumulou quando era o segundo homem mais poderoso do país, somado ao seu estilo agressivo, logo Dirceu passou ao comando. Nunca de forma explícita, mas a partir de intermediários.
Definida a candidatura de Chinaglia, seus aliados tomaram um susto quando aportou sem aviso em Brasília o recém-eleito deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP). Vaccarezza demonstrou, de saída, uma desenvoltura rara em um deputado federal de primeiro mandato. Sugeria alianças e estratégias. Sabia exatamente como atrair para a candidatura Chinaglia os líderes dos outros partidos, especialmente do PP, PTB e PR. Logo, o gabinete de Vaccarezza tornou-se o bunker da campanha de Chinaglia, e ele o seu coordenador. Ninguém teve dúvida: por trás de Vaccarezza, estava José Dirceu. A desenvoltura, as estratégias, as definições, não eram do novato Vaccarezza. Eram do veterano José Dirceu.
Dirceu vencia, assim, o primeiro round. Na semana seguinte, liquidou o segundo. O grupo dos não-paulistas indicou para disputar a liderança do PT o deputado pernambucano Maurício Rands, que ganhou projeção no ano passado pela defesa fiel que fez do governo na CPI dos Correios. Ele foi derrotado pelo bem menos conhecido deputado fluminense Luís Sérgio. Dirceu voltava a mostrar a sua força.
Disputa-se agora o terceiro round. Embora Lula tenha pedido pessoalmente a Tarso Genro que diminua o grau da tensão interna no partido, o ministro, ainda assim, foi capaz de reunir 214 petistas de gabarito como subscritores do documento em que prega a “refundação” do PT. Um texto final que, se não chega a falar claramente em corrupção e punição de quem cometeu irregularidades, como nas suas versões preliminares, continuar a criticar a postura “autoritária” de quem esteve no comando do partido no passado recente. Menção clara a Dirceu.
Em revide, Dirceu conseguiu um ato em sua homenagem em Salvador na quinta-feira, durante os festejos dos 27 anos do PT. Tarso e Dirceu (e é bom que se diga que na luta estão também todos aqueles que respaldam cada um dos lados) trocam seus golpes. Dirceu hoje leva clara vantagem. Mas a briga está longe de acabar. Até porque a vitória de Dirceu não era o desfecho que Lula gostaria. O presidente pode fingir que a briga não é com ele, como esforçou-se para fazer durante toda a crise do mensalão. Ou poderá em algum momento interferir. O fato é que o PT que elegeu Lula já não existe mais. Vive em seu interior um violento terremoto. A sorte do presidente é que a mesma coisa acontece agora na oposição, no confuso PSDB, e no PFL que tenta se renovar. Mas isso já é tema para um outro artigo.
* Jornalista há 20 anos, Rudolfo Lago, Prêmio Esso de Reportagem em 2000, foi repórter político de algumas das principais redações de Brasília. Hoje, é editor especial da revista IstoÉ e produz o site
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