Fábio Góis*
“Minha ação é a das palavras”
(Clarice Lispector)
Morta em 9 de dezembro de 1977, vítima de câncer no útero, a escritora ucraniano-brasileiro Clarice Lispector não chegou a completar os 57 anos por apenas um dia. Também não conseguiu ver publicada uma de suas mais introspectivas e perturbadoras obras, Um sopro de vida, livro de “pulsações”, que ficou a cargo de sua amiga e confidente Olga Borelli levar às rotativas. A obra póstuma de Clarice – assim como A hora da estrela (1977), romance emblemático da escritora – mantinha uma característica que a acompanhou durante toda a vida literária: a busca do inefável, do indizível, do que se escondia por trás das palavras, e certamente fugia da perscrutação humana nos recônditos mais insondáveis da alma.
Tal peculiaridade rendeu a Clarice uma espécie aura de mistério entre os leitores – ou “endeusamento”, como apontava Olga: quem se deparava com sua escrita não raro ficava entre o encanto e a perturbação, entre o fascínio e a dúvida. Clarice não estava lá mesmo para ser entendida. Ela mesma dizia que buscava a “não palavra”, o "lado escuro" da palavra escrita. Era uma escritora que buscava no próprio objeto intraduzível uma palavra que o definisse. Como (quase sempre) não conseguia, fazia das entrelinhas a sugestão, o primeiro passo. E Olga, atenta à trajetória da amiga, percebia que era esse apreço pelo questionamento que acabava por “distanciá-la” (no melhor sentido do termo) do leitor – mas alertava que a verdadeira distância, a morte, é que de fato a levou para longe. Infelizmente.
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Mas Clarice era uma mulher simples, “uma dona de casa que escrevia romances e contos”, como em outra ocasião definiu a fiel Olga (a confidente era mesmo atenta). Nada daquela “esfinge” do mundo literário inventada pelos leitores sob seu efeito. A própria Clarice se considerava uma mulher como qualquer outra, e definia-se como uma “tímida arrojada”. E realmente o era.
Dona de uma postura pública discreta e elegante, tinha um estilo que subvertia o fazer literário e intrigava a crítica da época (desde o primeiro livro, Perto do coração selvagem, de 1941, até o último, publicado em 1978, o supracitado Um sopro de vida). Em certa ocasião, os jornalistas-escritores Otto Lara Rezende, Caio Fernando de Abreu e José Castello conversavam sobre a escrita de Clarice quando, vendo que Caio falava sob o “feitiço” da escritora, Otto advertiu: “O que Clarice escreve não é literatura, é bruxaria.” Como a história mostraria, o próprio Otto estava “enfeitiçado”.
Mas há um lado da genial “mulher simples” que poucos conhecem. A escritora introspectiva e inquieta, que por força das circunstâncias pós-matrimônio (tinha dois filhos com o então diplomata Maury Gurgel Valente) chegou a exercer o jornalismo, tinha um ufanista interesse pela política. E o termo ufanista aqui não soa deturpado: embora tenha nascido na Ucrânia, ela se considerava brasileira. “A língua portuguesa me ensinou a falar”, dizia.
Clarice e a ditadura
É pouco conhecida a Clarice que contestava elegante e discretamente a ditadura militar, principalmente a partir dos anos 60. Ela fazia parte de uma turma de intelectuais de peso que se insurgiam com idéias contras os descalabros do “regime de chumbo”.
No dia 2 de junho de 1968 (“o ano que não terminou”, segundo o jornalista Zuenir Ventura), em uma raríssima aparição pública com fins “políticos”, ela integrou um grupo de cerca de 300 intelectuais (entre eles, o jornalista Franklin Martins e o poeta Ferreira Gullar) que, a pé, seguiram em marcha em direção ao gabinete do então governador do Rio de Janeiro, Negrão de Lima, no Palácio da Guanabara. Eles queriam uma gestão mais democrática por parte do governador do Rio, após a morte do estudante Edson Luís, assassinado em confronto com a polícia com um tiro à queima-roupa, em 28 de março de 1968, na capital fluminense.
No livro 1968, o ano que não terminou, Zuenir Ventura ressaltou a “importância” da presença feminina de Clarice durante o encontro. No calor dos debates, já no gabinete de Negrão de Lima, Franklin Martins, Ferreira Gullar e o governador quase chegaram às vias de fato – o que certamente traria muito mais problemas ao jornalista – a despeito de seus quase dois metros de altura – e ao poeta, por motivos óbvios de aparato institucional. Mas Clarice, uma dama de modos suaves e delicados, impôs certa compostura aos exaltados. Coube a ela breves palavras de serenidade. Nenhuma agressão física ocorreu.
No dia 6 de abril, Clarice publicou uma crônica em sua coluna de sábado, que manteria entre 1967 e 1973, no Jornal do Brasil intitulada “Estado de graça”, ao fim da qual um “p.s.” dizia: “Estou solidária, de corpo e alma, com a tragédia dos estudantes do Brasil”. Era uma referência velada à morte do estudante Edson Luís. Em 26 de junho, ela integraria a linha de frente constituída por artistas, intelectuais e profissionais de renome – a exemplo do arquiteto Oscar Niemeyer – na antológica Passeata dos Cem Mil (foto) contra o regime militar, também no Rio de Janeiro.
Acervo Paulo Gurgel Valente
Ação das palavras
Em texto sobre a presença da política na obra de Clarice, o crítico literário Silviano Santiago (“A política em Clarice Lispector”) contrapõe a imagem de Clarice como militante contra a ditadura e o depoimento enviado a ele por – quem mais poderia ser? – Olga Borelli, que tentava desvincular a amiga dessa “falsa” imagem. Segundo o artigo, Borelli explicou que Clarice “não pertencia a nenhum grupo e nenhum grupo a convidou para fazer parte dele”, o que de certa forma é confirmado por uma das anotações da escritora: “Minha ação é a das palavras”, postulou.
Mas é inegável o desconforto da autora de A maçã no escuro (1961) com a realidade sociopolítica do país – ela que nasceu em família judia que, em fuga do regime anti-semita instalado pelo nazismo, deixou a Ucr
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