Bajonas Teixeira de Brito Júnior*
Venho me perguntando, já faz algum tempo, que relações se podem encontrar entre os fatos seguintes: 1. As notícias referentes ao possível indiciamento do presidente de Israel, Moshé Katsav, sobre o qual a polícia dizia ter provas suficientes, em outubro do ano passado, para indiciá-lo por por estupro, abuso sexual e escutas ilegais (podendo receber uma condenação de três a 16 anos de prisão). 2. A declaração de culpa, contra o ministro de Justiça de Israel, Haim Ramon, em janeiro deste ano, por abuso sexual contra uma jovem do Exército. 3. A convocação de volta a Israel do embaixador em El Salvador, encontrado nu, embriagado, amarrado e amordaçado em uma rua da capital do país ao lado de objetos sado-masoquistas, em março passado. 4. A prisão de Henry Sobel guardando em sua bolsa gravatas dispendiosas em lojas da Flórida recentemente?
Penso haver algo intrigante nos liames que aglutinam esses quatro acontecimentos. De fato, nos últimos meses, eles foram sendo empilhados na minha memória e, confesso, sinto alguma dificuldade em ver qual o vínculo comum entre eles. Como quem procura decifrar um código ou um quebra-cabeça, venho examinado combinações diferentes entre eles mas não consigo chegar a alguma coesão mais profunda. Por exemplo, os três primeiros têm em comum o fato de possuírem um forte viés sexual. Neles se contam o estupro, o abuso sexual, o nudismo em via pública, o atentado violento ao pudor, etc. Mas há diferenças. Em primeiro lugar, os dois primeiros fazem uso das respectivas posições de poder para oprimirem suas vitimas. O presidente e o ministro violam a fronteira do respeito sexual ao inferior hierárquico porque, justamente, gozam de poder. Mas e o embaixador? O caso dele é, ao que parece, o da livre oferta de si mesmo como vítima imolada ao vexame. O fato de ser encontrado nu, embriagado e amordaçado em via pública, parece deixar bem claro que ele não abusa do poder. Muito pelo contrário: se há algum abuso não é de poder, mas de impotência. Ou seja, um abuso da auto-humilhação. Ele parece que buscou seu prazer exatamente no locus da vitima absoluta: um diplomata (isto é, um representante no exterior) nu, bêbado, exposto com seus brinquedos ao mundo todo em plena via pública. Enfim, a vergonha filtrada pelas lentes do planeta inteiro. Certamente algo vulgar, já que a pulsão big brother é bem saliente, mas, de algum modo menos nociva que a dos seus outros dois compatriotas. Bem, mas e o caso Henry Sobel? Eis o ponto. Ele não se encaixa. Parece que Henry não representa a sua cena na arena sexual mas, sim, na de outro valor. Estético, quem sabe. Ou, talvez, a de um requinte estético que faz pensar em dinheiro e poder.
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As considerações que faremos, supõem todas a versão de Sobel de que estava sob o poder de remédios e que, por isso, foi vítima de “transtornos de comportamento”. Não há muito que dizer. Apenas duas perguntas: por que, em seu transtorno, Sobel apoderou-se de objetos que, embora não tão valiosos (se considerarmos a cena do crime), exibem um significado emblemático no capitalismo americano? E: por que, se, segundo sua versão, estava sob o poder de remédios, Sobel afirmou que iria pedir “desculpas a Deus” quando encontrasse o Papa?
Quanto à primeira questão, penso que se o rabino estava sob um transtorno de comportamento, em que, portanto, vergava sob o domínio de forças fugiam ao seu controle, é de extremo interesse saber que seu descontrole o conduziu a gravatas das marcas Louis Vuitton, Giorgio’s, Gucci e Giorgio Armani.
Em relação ao segundo ponto, sinto que é incongruente. Ninguém deve pedir desculpas por estar enfermo. E se não faz sentido que Sobel se desculpe por estar doente, então ou ele está mentindo e nunca esteve doente, ou ele padece de uma enfermidade particular, que é a de julgar-se culpado por atos cometido pelo seu “eu outro”, lembrando aqui a expressão usada num filme bem conhecido. Bem, nesse sentido, parece que Sobel, por si mesmo, não se apresenta nem plenamente como culpado nem plenamente como vítima. O rabino está certo de que não tem culpa – que, como ele disse, o “Sobel das gravatas não é o Sobel que conhecemos”, mas, ao mesmo tempo, reconhece que deve “pedir perdão a Deus” aproveitando a visita do Papa. Aliás, algo digno de nota – por que esperar a visita do Papa se o perdão a Deus poderia ser pedido a qualquer momento, como todo mundo? Por que retardar o perdão, à espera de uma data especial e de um momento solene? Será que Sobel mente?
PublicidadeBem, uma coisa interessante é que, após ser pego com a boca na botija, Sobel, na mais completa “alteração de humor”, negou solenemente que tivesse sido ele o objeto das notícias sobre o roubo na Flórida: “Questionado sobre as notícias publicadas a respeito do caso e sobre as informações passadas pela polícia norte-americana, Sobel disse ao G1: “Nada disso é verdade. Essa notícia é sensacional[ista], fantasiosa. Não sou eu [na foto], garanto. Vou tomar providências”. Leia a entrevista.
Pois é. Sobel mentia descaradamente. Igualmente, como mostra a matéria, ao ser detido pela polícia, ele também negou ter se apropriado das gravatas. Só as evidências apresentadas pela polícia o fizeram confessar. Ao fim desse artigo, e decerto, com alguma desolação, devo dizer que, além de não atinar sobre o vínculo dos quatro casos que relatei, permaneço sem saber o motivo pelo qual Sobel mentiu aos jornalistas e à polícia. Se apropriou-se de gravatas caras por efeitos de uma desordem mental, e se, por isso, diz que vai pedir perdão a Deus na visita do Papa, já me parece difícil de entender. Mas se, além de tudo, percebo que o próprio fato só tornou-se fato para mim e outros leitores, em razão da insistência da imprensa brasileira, então perco minhas referências. A concessão de um mínimo de verossimilhança às desculpas de Sobel se torna difícil. Como se pode ver no link acima, só a investigação da imprensa, inclusive checando o endereço que aparecia na ficha da polícia da Flórida com o endereço do rabino em São Paulo, fez com que se tornasse um fato, ao menos para os leitores brasileiros, a prisão de Sobel nos EUA. Ele negou veementemente até não ter mais como negar.
Voltando à questão inicial, o que há de comum entre os quatro casos? Penso, às vezes, que há um fundo político e que a posição de Israel hoje no Oriente médio, como o aliado do “Grande Satã” americano, talvez explique algo. O próprio ataque ao Líbano, que hoje faz o apoio da população de Israel ao chefe do governo rastejar próximo ao nada, parece sinalizar no sentido de um “enlouquecimento político”. Ou seja, uma certa inflamação desmesurada da vontade de poder. Um certo pacto com Mefistófeles (E tal como o inferno, na narrativa de Thomas Mann em Doutor Fausto, é o paroxismo do calor e do frio, também o inferno político, com o Tio Sam como Mefistófeles, bem pode conduzir a alternância entre a prepotência e a humilhação, ou seja, a prepotência dos violadores demonstrada pelo presidente e o ministro e a impotência dos humilhados, teatralizada pelo embaixador. No fundo, as duas faces de uma mesma moeda).
Quanto aos delírios de poder, em todo caso, parece ser um grande erro de avaliação — já que ninguém duvida que Israel foi o grande derrotado ao fim frente ao Hezbollah. Aliás, erros de avaliação parecem que foram cometidos também pelo presidente de Israel, pelo ministro da Justiça, pelo embaixador de Israel em El Salvador e pelo senhor Henry Sobel. Mas, quanto a isso, seria forçar a mão ver aí um ponto comum, porque, afinal, erros de avaliação todos nós cometemos. Todos os dias. O que não significa que, em sua maioria, digam respeito a ações visando a encobrir atos vergonhosos.
*Bajonas Teixeira de Brito Júnior é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
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