Por volta das 16h30 do dia 26 de janeiro de 2013, a estudante Francielle Trindade Kittel, a Fran, de 26 anos, tirava a sesta com o engenheiro agrônomo Gomeri Pereira, seu companheiro há oito anos, quando o celular da garota começou a receber mensagens. Amigas a convidavam para visitar a Feovelha, feira agropecuária famosa na região, realizada todos os anos no município de Pinheiro Machado, a 80 quilômetros de Piratini. Mais do que negócios, na Feovelha ocorrem batizados, noivados, casamentos. É um evento de grande inserção social. Francielle e Gomeri, por exemplo, se conheceram na feira de 2005. Ela, natural de Bagé; ele, de Arroio Grande. Meses depois, foram viver juntos em Piratini, cidade que foi sede do governo na Revolução Farroupilha, na qual o Rio Grande do Sul se tornou independente do Império do Brasil por 10 anos (20 de setembro de 1835 a 1º de março de 1845).
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Quarenta anos mais velho que Fran, Gomeri pagou os estudos de sua companheira no curso de Veterinária na Universidade Católica de Pelotas e decidiu bancar o segundo curso da garota, de Agronomia, na Universidade da Região da Campanha (Urcamp), em Bagé.
– Toco projetos agrícolas com bancos e convenci a Fran a se formar agrônoma para assumir os negócios comigo. Ela passou no vestibular e aluguei um apartamento pra ela morar e estudar em Bagé – relata.
No sábado, 26 de janeiro de 2013, já bem acordada da sesta com o companheiro, as amigas continuavam insistindo para que Fran fosse vê-las na Feovelha e depois, quem sabe, passar o domingo na praia do Cassino, no litoral do município de Rio Grande.
– Ela me mostrou as mensagens e me convidou. Mas eu estava cansado e disse pra ela ir sozinha – recorda Gomeri.
Minutos depois, Francielle se despediu de Gomeri e ligou o motor do Cherry cor de sangue. O carrinho, presente zero quilometro de seu parceiro, tinha dois meses de uso. Deu a partida e tomou a rodovia RS-702, que liga Piratini à BR-293. Minutos depois veio o acidente, na entrada da Ponte do Costa, mesmo nome do arroio sob esta passagem, a 15 quilômetros de Piratini – onde ela e Gomeri, hoje com 68 anos, dividiam casa na Rua Sete de Setembro, 721, centro.
O profissional e o pessoal
O repórter da Rádio Nativa e editor do blog Eu Falei, Nael Luis dos Santos Rosa, de 44 anos, foi o primeiro profissional de imprensa a chegar ao local do desastre. Alertado em casa por um vizinho, pegou seu equipamento fotográfico e partiu às pressas.
– De longe, vi que era sério. O Cherry havia batido numa mureta de pedra na entrada da ponte. O motor “entrou” no carro e prensou a condutora.
Havia cinco, seis pessoas no local, motoristas que pararam para socorrer. Elas tentavam evitar que um homem se aproximasse das ferragens. Mas ele se desvencilhou, entrou pela porta traseira e se abraçou, em prantos, à motorista desacordada. Nael se deu conta de que conhecia a vítima e o homem que a abraçava.
– Francielle era alegre, popular na cidade. Frequentava várias festas e se relacionava bem com todos. A gente tenta manter o profissionalismo, mas foi difícil nesse caso.
Seu Gomeri permaneceu abraçado à vítima até que bombeiros chegassem com machados e serras. Só então Nael teve certeza de que a garota estava morta. O motor cortou a femural, veia de grande porte por meio da qual passa muito sangue.
– Falei pra ela ir pela estrada de chão em vez do asfalto. E recomendei que fosse devagar, porque a terra é ruim – lembra Gomeri.
Mas Fran preferiu o asfalto. Não se sabe exatamente a causa do acidente. O ex-companheiro da vítima admite:
– Ela andava tocada, não sabia dirigir devagar.
Fran fumava ao volante. A brasa do cigarro pode ter caído sobre seu colo. Pode ter se distraído ao mexer no rádio ou ao evitar um choque com um veículo que viesse no sentido oposto. Mas também pode ser que tenha perdido o controle do volante numa saliência na pista. Pode muitas coisas, o fato é que a ponte é um imã para acidentes.
Os problemas da ponte
A Ponte do Costa é avistada apenas quando os condutores estão em cima. Fica numa depressão do terreno, no centro de dois trechos de rodovia que funcionam como escorregadores, dificultando a frenagem de veículos em velocidade excessiva e/ou com muito peso, algo comum de acontecer a caminhões de carga.
O maior perigo vem com a noite. A ponte não é iluminada. Além disso, possui mão única e não há orientação de preferência de entrada. Por isso, não é incomum que motoristas trombem sobre a travessia, quando é tarde para impedir um choque violento. A Ponte do Costa possui ainda muitos buracos recorrentes. Através de alguns deles, quando as placas de ferro que suportam o asfalto despencam, é possível enxergar lá embaixo o leito do arroio. Um agravante: essas perfurações fazem com que, sobretudo na travessia de caminhões, a estrutura de ferro que sustenta o concreto balance fortemente, transmitindo a impressão de um terremoto.
– É uma ponte muito antiga, projetada originalmente em madeira para receber a passagem de trens – diz o empresário e produtor rural William Westermann, de Piratini.
A economia de Piratini e da região também sofre com as condições da ponte. As áreas de plantio de soja e milho têm aumentado, mas não há por onde escoar a produção até o porto do município de Rio Grande por via rápida e segura. Os comboios de veículos de cargas de grãos enfrentam dificuldades por causa das limitações da passagem e de alguns agravantes.
A má conservação da travessia, formada de uma precária combinação de ferro, algum aço e asfalto, com este pousado sobre as tais chapas de ferro que frequentemente desabam sobre o arroio, faz com que uma vez por ano o Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer), órgão do governo do estado, interrompa o tráfego no local para reparar defeitos, principalmente buracos causados pelo trepidar constante da estrutura frágil. Por vezes, os buracos são tão grandes que neles cabem rodas inteiras, e os solavancos provocados pelo impacto dos pneus só fazem acentuar os danos.
Quando o Daer fecha a passagem, a cidade fica ilhada. Em 2016, foi interrompida por cinco dias. E esperam-se novas interrupções em breve, pois os buracos voltaram a castigar. Mesmo com a ponte liberada, nem todo caminhão de carga pode passar. Isso porque o Daer permite que transitem por ali veículos com, no máximo, 24 toneladas, baixa tonelagem para a capacidade dos caminhões e as necessidades de escoamento. Além disso, a altura da ponte, quatro metros e 20 cm, impede o tráfego de caminhões mais altos.
Baldeação de passageiros
Nos dias de interrupção do tráfego na ponte, uma cena lembra o século 18. Os ônibus de transporte intermunicipal da empresa pelotense Embaixador, responsável pela linha, precisam fazer “baldeação” de passageiros. Com chuva ou sol, homens, mulheres e crianças de todas as idades têm de descer do veículo, atravessar a ponte carregando seus pertences e tomar novo ônibus da companhia estacionado do outro lado da passagem, para seguir viagem.
– Há muitos anos temos sido obrigados a lidar com essa situação delicada. Nessas ocasiões, nós agendamos os horários de viagem para que o encontro dos ônibus coincida – conta o gestor operacional da empresa Embaixador, Carlos Alberto Canielles.
Produtores “na mão”
– Os produtores são deixados “na mão”. Nós precisamos esvaziar os silos rapidamente para poder guardar neles mais grãos. Quando a ponte é trancada, nós usamos a RS-265 até Canguçu. Mas, desse município até o porto, a estrada é de chão, ruim. A distância é 40 quilômetros maior, há um grande desgaste de pneus e há pedágio, o que encarece o frete e o preço final dos grãos – lamenta Westermann, acrescentando que produtos transportados para Piratini destinados ao comércio atacadista, remédios, por exemplo, chegam mais caros à cidade.
O produtor rural reclama também do limite de tonelagem imposto pelo Daer.
– A determinação de que só caminhões com até 24 toneladas podem passar é uma prevenção exagerada, pois a ponte suporta mais peso. Na prática todo caminhão passa por ela com uma média de 50 toneladas. A ponte aguenta, mesmo assim a Polícia Rodoviária multa os motoristas. Mas nós seguimos passando com excesso de carga porque, apesar de tudo, é a melhor alternativa de tráfego. E porque aquela restrição de tonelagem, caso fosse seguida, inviabilizaria qualquer negócio.
O Daer reduziu a tonelagem porque a ponte, em vários acidentes, foi afetada por impactos de caminhões e veículos de passeio que abalaram a estrutura e aumentaram a distância dos vãos naturais de movimentação da ponte previstos no projeto original.
Uma espera de 30 anos
Lideranças empresariais e políticas de Piratini buscam uma solução há décadas, pressionando autoridades do governo do estado com visitas de delegações.
– Quando foi construída, há mais de meio século, a ponte foi um marco de desenvolvimento. Há cerca de 30 anos, porém, ela se tornou um
gargalo – afirma o empresário Maico Tunes Joanel, presidente da Associação Comercial até 31 de maio deste ano.
Segundo Maico, o último político que ensaiou uma solução – a construção de uma segunda ponte – foi o então governador Jair Soares (PDS). Ele construiu a rodovia RS-702, preparou as cabeceiras da nova ponte, mas, desde 1985, não se deu sequência à ponte nova.
O agrônomo Gomeri se emociona ao rememorar o ocorrido. Verte lágrimas. No momento da entrevista para esta reportagem, ele se recupera, em cadeira de rodas, da fratura de vértebras após cair de um barranco. E faz um pedido:
– Gostaria que as autoridades dessem atenção a essa ponte, senão as mortes vão continuar. Vi várias pessoas morrerem ali. No meu trabalho, visito muitas lavouras, viajo bastante. Uma vez, o motorista de um caminhão carregado de sorgo perdeu os freios e bateu na ponte. O homem estava esmagado na lataria. Gritava por socorro. Mas a gente não pôde fazer nada. Depois soubemos que ele iria se casar na outra semana. Isso machuca muito.
Ele lembra do momento em que sentiu que perderia a companheira:
– Quando estava abraçado à Fran no carro batido e o socorro não havia chegado, eu pedia a Deus que me levasse no lugar dela. Ela era nova; eu sou velho.
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