Doutor em Economia pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), onde também foi professor, o mineiro Eduardo Giannetti, 59 anos, é o raro caso de um economista capaz de discorrer com igual facilidade sobre meio ambiente, filosofia, cultura e política. Ajudado pela erudição, pelo texto elegante e pela tendência a buscar uma visão holística das coisas, publicou ano passado Trópicos utópicos (Companhia das Letras), uma das mais interessantes tentativas de examinar os grandes dilemas brasileiros à luz da crise civilizatória que acomete o mundo atual.
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No plano mais chão, Giannetti foi um dos principais consultores da ex-senadora Marina Silva quando ela disputou a eleição presidencial de 2014. Os dois mantêm imenso afeto e afinidade em relação a vários assuntos, mas estão longe de concordar em tudo. Ele, por exemplo, defendeu a proposta de teto para os gastos públicos (que se transformou na Emenda Constitucional 95), à qual Marina – que as pesquisas apontam como nome forte para a sucessão de Michel Temer – fez fortes restrições.
Para Eduardo Giannetti, Marina Silva precisa decidir se “é uma líder de movimento, na linha do Gandhi, do Luther King, ou se é candidata a chefe do Executivo”. Qualquer dos caminhos é relevante e aceitável, afirma ele, mas seguir um deles implica necessariamente abandonar o outro. Se o objetivo é se eleger presidente, argumenta, é preciso maior clareza na definição de propostas e maior ênfase na formação de alianças.
O economista elogia a equipe econômica e a Operação Lava Jato, mas critica Temer e “a área política do governo”, que considera “um desastre para o Brasil”. Ainda assim, não vê com bons olhos a antecipação da eleição presidencial.
Veja a íntegra da entrevista de Eduardo Giannetti para a Revista Congresso em Foco.
Revista Congresso em Foco – No seu último livro, o senhor fala numa “civilização tropical soberana e socialmente justa”, vista como um caminho alternativo para o Brasil, nem mimético nem profético, não é isso?
Eduardo Giannetti – Mais para profético do que para mimético. Profético sem messianismo.
Exato. Se o senhor fosse eleger o primeiro passo para dar hoje em direção a essa civilização, qual seria ele?
Eu acho que Brasil precisa completar o movimento esboçado desde 1988 de constituir um genuíno Estado federativo. Eu acho que o caminho do país é menos Brasília e mais Brasil. É fortalecer o poder local. Isso requer um redesenho da autoridade para tributar e uma definição de que apenas vai para o governo central o que for financiar atividades típicas de governo central e o que for para o desenvolvimento regional. O resto fica e é gasto perto de onde ele é arrecadado. Acho que essa é a revolução fiscal que o Brasil vai ter que fazer.
O senhor acha, vendo o cenário neste momento, que estamos ficando mais próximos ou mais distantes desse mundo?
Tenho muita esperança de que todo esse processo doloroso seja um caminho de profilaxia e de renovação das práticas políticas. Eu tenho forte convicção de que, se o câncer existe, é melhor conhecer e extirpá-lo do que continuar vivendo como se não estivesse lá. O câncer agora apareceu e está à vista de todos, na economia, na política e no combate à corrupção. O Brasil tem uma chance de dar um passo fundamental para ter uma vida pública mais transparente e mais condizente com as nossas prioridades.
Apesar do grande afeto, parece que a Marina e o senhor não pensam igual em relação a algumas propostas apresentadas pela equipe econômica. Ela faz críticas à PEC do teto de gastos, questiona a legitimidade do governo…
A legitimidade do governo não tenho a menor dúvida que é baixa e a área política do governo está muito longe de ser aceitável. Eu acho que é um desastre para o Brasil. A equipe econômica é de bom nível e as propostas da “Ponte para o futuro” têm muitas ideias que eu considero válidas e relevantes para nós sairmos da encrenca e do desastre que foi o governo Dilma.
O senhor não reconhece divergências com a Marina?
Eu nunca conversei com ela sobre a PEC do gasto público. A PEC não é uma panaceia, ela sozinha não resolve o problema fiscal, mas é um primeiro passo. E ela vai obrigar o político brasileiro a estabelecer prioridades. Se quiser que gastar mais em algumas coisas, vai ter que cortar em outras. Não dá para continuar aumentando tudo ao mesmo tempo. Acabou esse caminho. Nós estamos com uma carga tributária de 34% do PIB, déficit nominal de 10% do PIB, 44% da renda nacional brasileira transita pelo setor público – União, estados e municípios – e a sociedade não vê contrapartida de saúde pública, de educação fundamental, de saneamento básico, de investimento em infraestrutura. Isso não pode continuar.
O senhor encampa a tese da Marina em relação à convocação de eleições presidenciais?
Eu não tenho opinião formada sobre isso, mas me parece temerário e até perigoso antecipar eleições. Não gosto de mexer na Constituição nessa matéria. Se o quadro se deteriorar ainda mais, o que talvez vá acontecer, talvez se torne um recurso extremo, em último caso. Mas eu gostaria de estar num país em que as eleições são feitas tal como previsto na ordem constitucional.
No Brasil, até o dia seguinte está difícil prever, mas vamos lá. Que cenários o senhor imagina para o Brasil daqui a um ano?
Eu acho que no final de 2017 nós já vamos ter saído da recessão, o quadro político eu espero que esteja menos instável e acho que em 2018 nós vamos ter a chance de fazer um bom debate na eleição presidencial, que não foi feito em 2014, sobre os rumos do país.
O senhor imagina que a equipe econômica terá força suficiente para aprovar novas mudanças, depois da PEC do teto?
Sim. A economia já está esboçando um processo de recuperação. A inflação no ano que vem deve ficar no centro da meta, o que é uma extraordinária conquista. Isso permite baixar significativamente os juros. Acho que nós vamos terminar 2017 com os juros num patamar bem menor. Isso traz alívio fiscal, porque vai pagar menos com juros. E isso traz alívio para o setor privado porque os consumidores e os empresários vão poder pagar suas dívidas com um ônus menor do que estão tendo hoje.
Mas se fala em crescimento do desemprego nos próximos meses.
O emprego é uma variável de resposta lenta. Ele demora mais para cair quando começa a recessão, mas também demora mais para aumentar quando termina a recessão. É uma característica da variável do emprego. Então ela não vai reagir com a rapidez que nós gostaríamos, mas ela vai reagir com o tempo.
O Trump entra nessa história como um mais complicador para o Brasil?
É um complicador. O que mais me preocupa em relação ao Trump não são as medidas de economia que ele pode tomar nos Estados Unidos. É a instabilidade geopolítica que ele pode provocar. Eu temo que potências regionais como a Coreia do Norte, a China e como a Rússia se sintam nessa nova configuração tentadas a testar o seu poder regional. Por exemplo, invadindo áreas sobre as quais têm ambições. Testar, portanto, o isolacionismo do Trump.
No campo da economia, a equipe escolhida por Trump não seria indicadora de grandes mudanças?
É um indicador de desregulamentação financeira. Acho que ele vai cumprir a promessa de cortar o imposto dos ricos. E ele vai tentar conseguir autorização do Congresso para gastar no programa de infraestrutura…
Gastar no muro também?
No muro não sei [risos]. Ele está dizendo que quem vai pagar são os mexicanos. Não sei, provavelmente é uma bravata. Mas o que isso pode provocar é um aumento do déficit público, com pressão inflacionária e, como resultado, o aumento do juro americano. Mas não vai ser nada brutal, como foi o início do governo Reagan, em que os Estados Unidos ainda estavam com um problema inflacionário que precisava ser debelado e isso requereu juros extremamente elevados. Esses juros levaram os países da América Latina a entrar em colapso com a dívida externa.
O senhor atribui a vitória do Trump a um certo ressentimento de uma parte dos trabalhadores americanos. Ou seja, que ele ganhou por causas, sobretudo, econômicas. Não teria aí um fenômeno mais profundo, envolvendo aspectos filosóficos e ideológicos?
É um fenômeno econômico e psicossocial também. Essas coisas estão muito ligadas. A Economist trouxe um artigo espetacular mostrando a correlação entre indicadores de saúde e a votação do Trump [o artigo, de 19 de novembro, mostrou que o republicano foi mais votado onde os indicadores de saúde eram piores]. É maravilhosa a correlação, é mais forte do que a que vincula o voto em Trump aos brancos sem formação universitária. São pessoas que estão com dificuldades muito tangíveis e muito ressentidas com os caminhos que as coisas tomaram nos Estados Unidos. Essas pessoas votaram no Trump.
Dá para associar Trump com Brexit com Bolsonaro no Brasil…
Le Pen…
Le Pen na França…
Sem dúvida. Vemos a ascensão da direita no Leste da Europa, com figuras muito nocivas, muito malignas, e no Brasil o caminho está aberto para aventuras de todo tipo.
No caso brasileiro, poderíamos interpretar isso como uma frustração com as forças de centro e centro-esquerda que dominaram a política brasileira nas duas últimas décadas?
Acho que é um desencanto com a política, com o establishment político e com a injustiça. Mas é uma insatisfação que acaba desaguando onde ela menos deveria desaguar. O Trump é um populista, um demagogo, que não vai dar para essas pessoas o que elas estão imaginando, o que ele prometeu dar. A volta da siderurgia na Pensilvânia não vai acontecer. É um demagogo, um populista, um mentiroso. Não diferente do Hitler, nos anos 1930. Acha que há uma grande conspiração de Wall Street contra o americano comum. Diz que vai peitar a elite econômica e política e a mídia conspiradora. É um discurso completamente desconectado da realidade, delirante.
Qual o caminho possível para o Brasil superar esta fase de extremo impasse político?
Reforma política abrangente e a criação de uma estrutura partidária enxuta e baseada em programa.
Quem pode liderar essa reforma?
Ah, aí está a grande pergunta. Tem que ser um estadista. Não pode ser alguém comprometido com esse status quo. É uma tarefa para um estadista.
Para Marina? Se for esse o caso, ela não está muito sumida?
Do jeito que ela está, ela lidera as pesquisas de opinião para o segundo turno [pesquisa Datafolha de dezembro], imagina quando ela aparecer…
O senhor acha que ela seria capaz de fazer a ponte entre uma população insatisfeita com a política, tal como ela é feita hoje, e o empresariado, como ela mais ou menos se insinuou na eleição passada?
É possível, e necessário.
No Congresso, muitos dizem que Marina já era e bom resultado dela na pesquisa se deve ao recall…
Isso nós vamos ver em 2018. Os empresários gostariam de ver a Marina com posições mais definidas sobre temas espinhosos, coisa que ela tem evitado fazer: definir com mais nitidez o que ela propõe. Eu acho, e tenho dito isso pra Marina quando converso com ela, que a Marina precisa decidir se ela é uma líder de movimento, na linha do Gandhi, do Luther King, uma líder de causa, com uma força simbólica muito relevante, que é um caminho maravilhoso, uma coisa da maior importância… ou um outro caminho, se ela é candidata a chefe do Executivo. Isso requer definição programática, entendimento de que ela precisará desagradar alguns…
Alianças, né?
Alianças. Equipe sólida nas mais diferentes áreas, economia, educação, saúde, meio ambiente… e eu não vejo a Marina fazendo uma opção clara entre ser uma líder de movimento ou ser uma candidata a chefe do Executivo. O Mandela, na África do Sul, foi alguém que fez a transição. Ele foi líder de movimento e, num determinado momento, ele assumiu uma postura de estadista e de chefe do Executivo. Ele teve a coragem, por exemplo, de manter na equipe econômica e no Banco Central quem já estava lá no regime do apartheid. Demonstrou uma sabedoria incrível. Não se brinca com dinheiro. Estadista!
E essa crítica aos possíveis excessos do juiz Sérgio Moro e da Lava Jato e aos eventuais riscos de se estar abrindo caminho para criar no Brasil um Estado policialesco?
Não vejo nada disso. Acho que eles estão se conduzindo espetacularmente bem, dentro da lei e fazendo um papel fundamental para profilaxia das práticas políticas no Brasil. A única coisa que me incomoda e me desagrada são os vazamentos, que ninguém sabe de onde vêm e que podem até comprometer as delações premiadas.
O senhor não vê seletividade? O PT faz muito essa crítica.
Ora, estão implicando agora os líderes do PSDB, do PMDB. Não vejo seletividade. Quem apostava que não ia acontecer está tendo que rever porque está acontecendo e está chegando no Temer, inclusive.
O senhor achou que precisava daquela condução coercitiva do Lula, lá em março de 2016? Está expresso na lei, embora ultimamente isso tenha valido pouco, que só cabe a condução coercitiva em situações específicas, como a recusa do investigado em comparecer.
Ele teve o tratamento que outros tantos tiveram, eu não tenho condições técnicas de avaliar esse procedimento. Mas não acho que o Lula teve um tratamento diferente dos demais.
E nem acha que todo esse processo da Lava Jato pode desembocar numa espécie de Itália de Berlusconi, como muita gente fala por aqui?
Espero que não. Eu acho que não precisa repetir a experiência ruim da Itália. Muito menos o acordão que houve para terminar as investigações da Operação Mãos Limpas. Espero que isso não aconteça no Brasil. E acho que, se tentarem fazer isso, vai ter manifestação popular porque a população está acompanhando com muita atenção todo esse processo. Minha intuição é de que nós estivemos no limiar numa onda forte de manifestações caso a anistia ao caixa dois fosse aprovada no Congresso. A verdade é que o país está cada vez mais complicado.
Quem, na sua opinião, está entendendo o que acontece no Brasil hoje?
Acho que nós temos dois estadistas, que, quando se pronunciam, demonstram uma compreensão sóbria, isenta e objetiva da realidade: Fernando Henrique Cardoso e Marina Silva. São as duas pessoas que transmitem uma abrangência e uma serenidade de leitura não partidária e não apaixonada.
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