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É o desfecho de uma série de reminiscências sobre a resistência à ditadura militar levada adiante por jornalistas de Brasília, em vários jornais alternativas e em outras iniciativas. O episódio com Sarney era a última provocação, a testar se realmente a nova democracia anunciada era para valer.
Antonio de Pádua Gurgel, ou Padu, para os amigos, lembra com amargura dos duros tempos da ditadura militar. Ele diz que às vezes se arrumava para sair e, prestes a abrir a porta de casa, desistia. Sirenes soavam, lembrando àquele jovem idealista que o inimigo, tirano e muitas vezes brutal, estava à espreita. Eram os “anos de chumbo” da ditadura militar, que cerceava o pensamento livre e reprimia, não raro impondo a morte aos insurgentes, em nome da ordem e do progresso.
“Depois do embrutecimento do regime, da radicalização da tortura, ninguém aguentava, era um sufoco generalizado”, disse Padu, em entrevista concedida na última quarta-feira (20) ao Congresso em Foco. O jornalista vem a Brasília na próxima quinta-feira (28) para lançar seu livro, onde espera encontrar alguns de seus amigos de militância, e que, como ele, ainda ganham a vida com textos e informações.
Décadas depois, em uma época de democracia plena e com uma ex-militante que já foi torturada pelos militares eleita presidenta da República, Antonio de Pádua festeja poder não só publicar livremente seus textos, como o faz agora no “resgate histórico”, como poder se dirigir diretamente a quem está no poder desde aquela época. “É muito melhor viver hoje, com liberdade, do que ontem, sem liberdade. Quanto a isso, não há a menor dúvida [risos]. Eu acho muito positivo que ela [Dilma Rousseff] esteja na Presidência da República. Vou ficar mais feliz ainda quando não tiver Sarney, Collor… Uma oligarquia política que, naquela época, em 1968, já estava no poder”, fustigou Padu, referindo-se aos dois ex-presidentes da República que hoje desfilam como senadores.
Ao se propor ao garimpo de duas publicações brasilienses – os jornais Tribo e Cidade Livre, além do Jornal do Século (publicação do Jornal do Brasil) – que ousavam explorar, em plena ditadura, a “miscelânea de influências” e as possibilidades do livre pensar, Padu permitiu-se ao mergulho em lembranças “horrorosas” e, por outro lado, “estimulantes”. “Trata-se de um livro de resgate histórico que focaliza especialmente um momento importante na vida da imprensa brasileira, em que os jornais mudaram completamente a maneira de fazer jornalismo”, resume o ex-líder estudantil, que hoje é sócio-gerente da Pro Texto Comunicação e Cultura.
Agora Padu se vê livre daquela realidade “sufocante” da ditadura, em que os órgãos de imprensa “tinham de pensar muito antes de publicar alguma coisa”. Mas algo ainda o incomoda: ele lamenta que a maioria das pessoas tenha perdido o hábito de trocar ideias pessoalmente e em grupo, olho no olho, como nas ágoras gregas, e em vez disso prefiram interagir em frente a uma tela globalmente interligada. “Hoje, a praça é o Facebook. Antigamente, as pessoas se juntavam.”
Confira a íntegra da entrevista com Antonio de Pádua Gurgel:
Congresso em Foco – O livro é uma espécie de consequência, ou continuação, de outro, A rebelião dos estudantes. Como foi o processo de transição de uma obra para outra?
Antonio de Pádua Gurgel – Eu participei e fui muito atuante no movimento estudantil – era o primeiro vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes Secundaristas de Brasília, em 1968. Então, participei praticamente de todas as manifestações. Quando eu comecei a escrever livros, imediatamente surgiu essa ideia de fazer um livro sobre aquele período, mas a ideia só tomou corpo quando eu consegui cópia dos processos aos quais eu tinha respondido devido à minha participação no movimento. Isso foi em 1998. Foi quando eu resolvi escrever A rebelião dos estudantes. Para fazer esse livro [Rebelião], além desse material eu precisei fazer um trabalho de pesquisa, e a minha proposta era falar do movimento estudantil, que acabou em 13 de dezembro de 1968, com a decretação do AI 5 [ato institucional número 5]. Acontece que, quando eu estava fazendo o trabalho de pesquisa, sobrou muito material.
E como você conseguiu o resto do material?
Por exemplo, eu fui ao Centro de Documentação da Universidade de Brasília [Cedoc-UnB]. O [material do] Cedoc não termina em 68. Então eu vi que, se eu quisesse continuar a pesquisa, já sabia que ali tinha material. Além disso, nós tínhamos uma experiência muito rica relacionada com a década de 1970, que foi a produção de jornais alternativos em Brasília – principalmente A Tribo, do qual eu era um dos quatro diretores; e Cidade Livre, no qual eu tive uma atuação significativa – eu era integrante da cooperativa que criou o jornal, e tinha experiência em imprensa alternativa. Quando eu lancei A Rebelião…, eu pensei logo em fazer uma continuação, um trabalho que – embora de caráter histórico, uma sequência – teria, do ponto de vista gráfico, uma peculiaridade diferente. A proposta era resgatar aqueles jornais que fizemos na década de 70. Surgiu então, já em 2002, a ideia de fazer um livro em formato tablóide. No lançamento do livro, eu já estava recolhendo material junto às pessoas que foram ao lançamento. Naquele período do ano 2000, havia saído o Jornal do Século, uma publicação do Jornal do Brasil.
Daí veio a ideia do título…
Quando imaginei o título Jornal da década de 70, o conceito inicial era pegar os jornais daquela década, mas esse conceito evoluiu para fazermos uma publicação sobre a década de 70 como um todo. Incluindo os jornais que fizemos na década de 70. Então, acrescentamos mais material – e foi daí que veio, por exemplo, o capítulo do Pacotão, que, originalmente não estava previsto. Foi uma espécie de subproduto da pesquisa que eu tinha realizado para o movimento estudantil. Basicamente, foi essa a ideia. Agora, é evidente que um trabalho como esse, por se tratar da década de 70, de Brasília, ele acaba sendo também um livro de interesse da história do Brasil, porque esses fatos interferiram na vida de todo o país.
Como você vê o movimento estudantil hoje?
Objetivamente, a gente percebe que a UNE, que é a principal entidade do movimento estudantil, atrelou-se ao projeto de poder, ao Palácio do Planalto, quando os estudantes sempre se caracterizaram como oposição. Não se vê nenhuma iniciativa da UNE no sentido de mobilizar estudantes, em causas como o combate à corrupção, a luta pela preservação ambiental e tantas outras que precisam ser abraçadas. Se fosse a velha UNE que atuou em 68, certamente ela não estaria com essa atitude – que é quase de conluio com o governo. Mas eu não queria falar isso, não, acho que estou exagerando um pouco… Eu quero dizer o seguinte: como o momento histórico é diferente, eu não vejo um momento de mobilização semelhante àquele de 1968. Vamos ficar por aqui, se não eu vou comprar briga…
Atualmente, há dois senadores em exercício que já foram militantes da causa estudantil – Randolfe Rodrigues (Psol-AP) e Lindbergh Farias (PT-RJ) – e que convivem com o também senador Fernando Collor (PTB-AL), defenestrado da Presidência da República em boa parte graças à pressão dos estudantes. Mas como o senhor não quer mais falar da UNE…
Eu já dei outras declarações que… Eu não sou político – sou jornalista, escritor. Então, acho que, se eu me colocar de uma maneira muito agressiva, isso não constrói. Em vez de eu fazer o papel de pesquisador, fico adotando o papel de militante. Eu fui em 68, agora não sou mais. Sou um observador crítico, mas se eu quiser me manifestar a esse respeito, eu deveria produzir uma obra, uma análise – o que não está fora de cogitação – sobre o assunto. Mas não dando entrevistas – isso fica para o Randolfe, o Lindbergh.
Voltemos ao livro, então. Foi difícil separar o militante do jornalista, do pesquisador, na construção da obra?
Como jornalista, você, quando define uma pauta, já está tomando uma posição política. A objetividade jornalística é um mito, não existe. Se eu resolvo fazer um livro sobre os jornais alternativos da década de 70, e não sobre o trabalho assistencial do Projeto Rondon, eu já tomei uma posição. Se eu resolvo fazer um livro sobre o movimento estudantil de 68, também tomei uma posição.
É porque a impressão que eu tive quando li o livro é de que a digital do militante está presente na obra…
É possível comparar. Agora, no livro, e não agora, nessa entrevista. É porque agora já estamos fazendo um debate sobre a natureza da entrevista… [risos] Mas vou responder à sua pergunta da seguinte maneira – e editada, ao menos de minha parte: hoje, estamos vivendo um momento histórico, sociológico diferente daquele de 68, quando a sociedade toda estava mobilizada contra a ditadura, e pela recuperação das liberdades democráticas. Havia uma agenda própria dos estudantes no sentido da melhoria das condições de ensino, de uma reforma educacional. Hoje a agenda é outra. Além disso, houve uma evolução tecnológica, de costumes, etc, que modificou o caráter da relação entre as pessoas. Em 68, mal havia iniciado a televisão a cores – isso aconteceu em 1970, na Copa do Mundo. As pessoas tinham muito hábito de debater, discutir as coisas – isso foi desestimulado ao longo de décadas. Havia uma quantidade muito grande de jornais – em Brasília, então uma cidade nova, tinha pouco, mas só no Rio de Janeiro tinham uns 14 ou 15 jornais. Todos esses jornais desaparecerem, porque houve uma mudança de prioridades nas relações entre as pessoas. Hoje, as entidades não aparentam estar preocupadas com a mobilização dos estudantes, porque não é possível que não haja bandeiras a serem desfraldadas. Falta vontade política.
A internet e outros meios de comunicação mais modernos acomodaram os estudantes, e mesmo os jornalistas?
Não é questão de acomodar. Mas eles propiciaram um isolamento, porque esses meios de comunicação são usados solitariamente. Hoje, a praça é o Facebook. Antigamente, as pessoas se juntavam fisicamente. Por exemplo, na UnB tem um anfiteatro, tem aquela praça ao ar livre que depois foi chamada de Teatro da Minoria. Mas era ali que tudo mundo se encontrava. E isso não mudou pouca coisa – [o filósofo canadense Marshall] McLuhan já dizia que o meio é a mensagem]. Mas uma coisa que une tudo isso é o caráter de rebeldia, e a possibilidade de ser rebelde, dessa fase da vida.
Difícil comparar as duas épocas?
Na nossa época não tinha liberdade nenhuma. Você fazia uma manifestação e ia preso, apanhava e, eventualmente, podia até desaparecer. São momentos históricos muito diferentes.
Nesse sentido, faltam figuras como Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro? O jovem de hoje se ressente da falta de formadores de opinião como eles?
Pessoas ilustres sempre fazem falta, embora haja a possibilidade de surgirem outras. A grande diferença é que naquela época a sociedade todas estava mobilizada para derrubar os militares. Os estudantes isoladamente não fazem nada. E, na ditadura, eles exprimiram um cansaço da classe média com aquela situação, com a presença dos militares no poder. Eles não eram uma voz isolada, mas a expressão de um anseio, um clamor nacional. Depois do embrutecimento do regime, da radicalização da tortura, ninguém aguentava, era um sufoco generalizado. Eu, por exemplo, às vezes me arrumava para sair, mas desistia, porque na hora em que ia sair, escutava uma sirene.
E como ficava a produção jornalística nesse contexto?
Não tínhamos departamento comercial, nem Tribo nem Cidade Livre [risos], mas a gente arranjava anúncios. A Polícia Federal ia às agências para dizer para o pessoal não dar anúncio nos jornais. No governo Médici [Emílio Garrastazu Médici, presidente entre 1969 e 1974], era um horror. A gente até tentava fazer alguma coisa, mas chegou um momento em que o negócio ficou inviável. Inclusive, a gente estava ameaçado de morrer. Mas a gente tinha uma veia política muito forte, porque éramos de uma geração que foi formada em um clima de debate, democrático, quando era estimulada a troca de ideias. Não havia condições de fazer isso naquele momento histórico. Até nesse aspecto, acredito que o uso de drogas, muito usadas naquele período, em parte decorreu um pouco desse sufoco que aquela geração sofria.
Décadas depois, vemos uma ex-militante torturada nos porões da ditadura eleita presidenta da República…
É muito melhor viver hoje, com liberdade, do que ontem, sem liberdade. Quanto a isso, não há a menor dúvida [risos]. Eu acho muito positivo que ela esteja na Presidência da República – era presa política, agora é presidente. Vou ficar mais feliz ainda quando não tiver Sarney, Collor, uma oligarquia política que, naquela época, em 1968, já estava no poder.
Como foi o tratamento jornalístico dado à transição para a abertura democrática?
Antes de responder, quero fazer uma observação: falamos muito da Tribo e pouco de Cidade Livre, que começou em 1977, quando já éramos jornalistas profissionais atuando em grandes veículos de comunicação – Veja, Estadão etc. Na Tribo, estudantes entrando na faculdade de Jornalismo. Era um outro momento pessoal, profissional e político. Tinha muitas matérias que a gente não podia publicar onde a gente trabalhava – não necessariamente por causa da censura, mas devido a um outro fenômeno, a autocensura. Com a economia do Brasil menos desenvolvida, pujante àquela época, o jornal dependia muito de anúncio oficial. Era impensável naquele momento uma Veja, ou mesmo um jornal de oposição – até para importar o próprio papel de imprensa, que não eram produzidos no Brasil, os veículos precisavam de autorização do governo. Os veículos de comunicação tinham de pensar muito antes de publicar alguma coisa. Uma das funções do Cidade Livre foi publicar coisas que a gente não podia publicar onde trabalhava. Teve uma época, por exemplo, em que houve um surto de meningite, mas a gente não podia publicar nada sobre o assunto, porque seríamos acusados de atentar contra a segurança nacional. Ao mesmo tempo, o Cidade Livre talvez tenha sido o primeiro jornal que cumpria uma atuação de crítica à própria imprensa. Finalmente respondendo à sua pergunta, essa ruptura era simplesmente descrita, não tínhamos a pretensão, aqui neste livro, de fazer uma análise. Simplesmente mostramos o desenrolar dos acontecimentos, por meio das edições do nosso jornal, das reproduções do Jornal do Século e dos nossos textos. Uma coisa que se deu naturalmente. Quando o leitor começa lendo a íntegra do AI-5 e, quando percebe, já está lendo [a matéria sobre] o Pacotão.
O livro intercala textos sóbrios, analíticos, com poemas, ilustrações de humor ou sarcásticas, e imagens de época, em uma diagramação irreverente. Dá pra perceber uma certa anarquia, o livro transpira esse ideal libertário da época…
Fico muito feliz que você tenha percebido isso. A nossa proposta é justamente se contrapor à falta de liberdade. Nas nossas redações, quando a gente elaborava os jornais, o ambiente era absolutamente democrático. Qualquer ideia era debatida, e nenhuma era descartada. Mas ainda na Tribo, porque a gente era mais jovem, nem éramos jornalistas ainda – a gente mal debatia as ideias, apenas recolhíamos o material, e depois conversávamos sobre o que era mais importante publicar. Mas não havia nenhuma restrição ao que pudesse ser publicado, nenhum tipo de autocensura. Procurávamos extravasar esse inconformismo com a falta de liberdade. Nesse aspecto, Cidade Livre e A Tribo – onde éramos um pouco anárquicos, como você falou – foram uma grande escola.
Uma anarquia produtiva…
Era uma anarquia responsável, porque éramos uma empresa registrada em junta comercial e tínhamos um editor responsável, que não podia estar respondendo a processo, e sem ele o jornal não podia circular. Não era uma bagunça total – pagávamos imposto e tínhamos endereço. Mas não podíamos imprimir um panfleto e sair distribuindo nas ruas, porque eles [militares] te pegavam. Se alguém quisesse publicar um palavrão gratuitamente, por exemplo, os próprios jornalistas reagiriam, porque isso poderia afetar a segurança do próprio jornal.
De onde vinha a inspiração?
Uma coisa que influenciou muito todos nós foi a Semana [de Arte Moderna] de 22, principalmente Oswald de Andrade. Também o Barão de Itararé, que também tinha uma atitude muito irreverente em relação ao poder, de uma maneira mais ampla. E também o Sérgio Porto. Pasquim. Isso do ponto de vista estritamente, digamos, de postura em relação à questão política. Mas houve outras influências. Naquele momento, na década de 1970, todo mundo estava em protesto contra a Guerra do Vietnam, e isso não podia deixar de influir. No noticiário internacional, não havia censura sobre essa guerra, havia muitas matérias nos jornais, na televisão, porque não era uma coisa que estava acontecendo dentro do Brasil. Havia uma grande cobertura. Paralelamente a isso, a contracultura se caracterizou também por uma guinada, principalmente com os Beatles, para o Oriente. Então começou a haver uma influência oriental na maneira de as pessoas se vestirem, na alimentação macrobiótica. Nós publicamos um poema de Mao Tsé-Tung, era uma miscelânea geral. Os jornais não eram uma ilha, eles estavam imersos em todo um contexto.
Muito ou pouco dos beatniks?
Também. Mas, ao mesmo tempo que tem dos beatniks – e estamos falando especificamente da Tribo –, a década de 70 começou de um jeito e terminou de outro, tanto no exterior quanto no Brasil. Começa no AI-5 e termina com a anistia – com “a volta do irmão do Henfil” –, duas coisas bem emblemáticas. Em termos de mundo, a década começa com a ofensiva norte-americana no Vietnam. Em 1973 ou 1975, eles saem do Vietnam. Tem também a questão racial da época – temos uma matéria que fala do transplante de coração de um cara branco para um homem negro. “Coração negro bate no peito de um homem branco” [risos ao dizer o título da reportagem]. Esse livro tem também esse caráter histórico, de noticiar tudo isso aí. E o grande fechamento é o Pacotão, que foi um escracho, o Sarney ficou puto da vida com o Pacotão, ameaçou até fechar quando a gente saiu com aquela música “Je vous salue, Marly” – primeiro, porque a música foi com base em um filme censurado, depois porque ele [Sarney] e a mulher [Marly Sarney] são supercatólicos.
Ou seja, mesmo com o arbítrio, havia o bom humor e lado bom. Tinha Leila Diniz…
Eu era apaixonado por ela. Aliás, todo mundo era apaixonado por ela. Mas eu acho que era mais do que os outros.