Principais trechos deste artigo
Hamilton Garcia de Lima *
É cedo para tirar todas as lições da revolta juvenil-popular de junho de 2013, mas salta aos olhos seu caráter democrático, pluralista e horizontalista: o rechaço ao vandalismo como forma de manifestação, o repúdio à violência contra os partidários e a recusa às tentativas de monopolização dos protestos por grupos autoritários de variadas inspirações ideológicas são alguns dos novos elementos que ela trouxe à vida política nacional. Trata-se de uma perspectiva bastante diversa daquela vigente até o movimento dos caras pintadas (1991). Até os anos 90, as mobilizações populares encabeçadas pela vanguarda estudantil — que nos anos 60 e 70 chegaram a contagiar o operariado fabril — eram guiadas pelas verticalizadas organizações comunistas, as únicas capazes, diga-se de passagem, de furar a couraça autoritária da ditadura que impedia a organização/mobilização popular — infelizmente, tais organizações, quase sempre possuídas por certezas dogmáticas, não souberam conduzi-las pelos caminhos que levariam à redemocratização.
No impedimento de Collor, estávamos comemorando sete anos de governo civil no país, os regimes comunistas desabavam e o PT encarnava a crítica a todas as formas de autoritarismo; por isso, foi capaz de liderar a juventude nas ruas contra a captura oligárquica do Estado pelo voto popular. A mobilização vitoriosa, porém, à semelhança de 1968, encontraria a direção equívoca de uma vanguarda divorciada dos anseios populares. Diante da necessidade de sustentação do governo interino do vice-presidente Itamar, os petistas tomaram o atalho da oposição a qualquer custo, não só inviabilizando suas chances eleitorais presidenciais por uma década, como esterilizando as energias jovens no sentido da defesa e do desenvolvimento da democracia por meio de campanhas golpistas contra o presidente duas vezes eleito no período seguinte. Daí por diante, crescentemente, o canal de manifestação política da juventude democrática nunca mais encontraria um partido político com o qual interagir.
Hoje, o quadro que vemos é o de radicalização desse divórcio. Com o PT envelhecido e corroído pelos seguidos escândalos de corrupção, as novas gerações se afastaram ainda mais da militância partidária, e os partidos dissidentes, surgidos antes e depois da degeneração petista, apesar da longa semeadura da revolta popular em que se empenharam, apenas em parte conseguiram atrair a força da juventude desgarrada do petismo e do pecedobismo. Dos partidos moderados de esquerda, apenas a Rede parece vocacionada para angariar simpatias naquele segmento.
Os novos movimentos sociais emergentes e sua linguagem franca contra a decrepitude do Estado e seu sistema clientelista de representação, que perverte e corrói a democracia brasileira, parecem ser o anticorpo contra a cooptação dos organismos sociais responsáveis pela pax lulista da última década. A nova geração política, ainda tateando o campo em busca de um partido para chamar de seu, inicia seu protagonismo com agências próprias ainda de caráter antipartidário. Isso, ao contrário do que pensam muitos analistas e jovens, está longe de significar a despolitização dessa geração, sendo antes uma nova forma de começo em meio a um ambiente político salinizado, saturado de ideias anacrônicas e mentalidade oportunista.
As novas formas horizontais de organização — baseadas em redes virtuais — terão diante de si agora, no refluxo natural do movimento, o desafio de encarar as tarefas que os partidos não são mais capazes de executar e outras que tais organizações só poderão desempenhar em associação íntima com algum partido político coetâneo. Ao mesmo tempo que encaram o desafio do amadurecimento de suas organizações, elas lançam o desafio a todas as velhas organizações para se renovarem por meio das redes — redes essas que, no caso dos partidos oposicionistas, chegaram a se formar espontaneamente nas eleições de 2006, sem que eles tenham entendido seu potencial renovador, para além do mero instrumentalismo. Nesse processo, o novo deve se apropriar da experiência do velho, depurando-o de seus anacronismos, e o velho que ainda não envileceu deve abrir-se ao diálogo com a nova mentalidade.
Tudo indica que o exercício, como sempre, será mais difícil para aqueles já viciados ou conformados com as práticas políticas correntes, incapazes de ver nos novos atores mais do que a imagem retrospectiva das próprias ilusões juvenis de sua época. Eis aqui a razão principal para o divórcio entre o povo e os partidos que as novas gerações revelaram de maneira radical, independentemente do programa e da história: a incapacidade generalizada de aprender com a história e se renovar com a vida.
É certo que a ausência de uma perspectiva partidária, em geral, por parte dos novos movimentos facilitou a agregação autônoma dos variados grupos descontentes nas ruas, ao mesmo tempo que inibiu o ataque dos grupos dominantes que costumam reduzir toda forma de oposição à mera jogada eleitoral ou golpe das elites. Isso, aliás, denota um espírito democrático forte dessa geração, se comparada à dos anos 1960-70, quando predominava o sectarismo e a vontade de domínio de um grupo sobre o outro. Os novos movimentos sociais, nesse ponto, parecem muito mais preparados para enfrentar os velhos cacoetes da esquerda do que as velhas organizações, quase todas capturadas por facções e partidos de viés autoritário.
O protoanarquismo ensaiado por algumas lideranças, amalgamado ao romantismo antipolítico conservador mais abaixo, tende, todavia, a perder seu papel positivo se, no segundo momento, abrir seu campo de visão para o terreno amplo e intrincado da política, não apenas como conchavo parlamentar, mas também como diversidade e contradição social — este último aspecto mal revelado nas ruas. Sem reunir e organizar os recursos políticos disponíveis e necessários para as mudanças mais profundas, inclusive em termos programáticos e intelectuais, a fragmentação e a espontaneidade vão sucumbir ao jogo pesado dos políticos e das classes sociais organizadas. O fim prematuro da política, tal como historicamente preconizado pelos anarquistas, observou Yuli Martov [1], não só embotou a ação política desse segmento, como teve consequências perversas até para seus críticos, que não observaram apropriadamente o papel da democracia e da participação popular na transformação do Estado e da sociedade, propiciando, inadvertidamente, as condições necessárias para a emergência do totalitarismo no século passado [2].
Sem adentrar o campo político, portanto do Estado, com todos os apetrechos capazes de amplificar as vozes das ruas no interior da arquitetura democrática de 1988, a mudança almejada pela nova geração pode ter o mesmo fim melancólico das gerações 1970-80, que tentaram fazer política acreditando cegamente em seus partidos dogmáticos e não foram capazes de fazer seus velhos dirigentes abrirem os olhos para a nova realidade democrática do Brasil. Perseguir esse objetivo exige ler criticamente a trajetória das gerações passadas, compreendendo seus limites, entendendo suas derrotas e apreendendo as dificuldades inerentes da disputa da direção de um Estado que, ao longo do século passado, ampliou fantasticamente sua capacidade de intervenção na economia e na sociedade de um modo geral.
Os perigos e as oportunidades que se prenunciam
Às vésperas do esgotamento da estratégia de compromisso da “Carta aos brasileiros” (2002), que abriu as portas para o real II e seu enfrentamento da exclusão social com base no incremento das rendas financeiras dos pobres (devedores) em proveito dos ricos (credores) [3], é inquietante para os grupos no poder o surgimento de um movimento que, forjado no vácuo do petismo, alcança grandes proporções entre as camadas mais intelectualizadas antes mesmo que a crise econômica se estabeleça. A preocupação dos principais setores sociais beneficiários do sistema deriva do que pode vir a acontecer com seu domínio se ao descontentamento atual se juntar, num futuro próximo, a fúria dos afetados por uma crise econômica que, indiferente às esconjuras governamentais e suas alquimias, ameaça incapacitar o Estado a continuar promovendo sua legitimação à base da paz social ou, em outras palavras, de benefícios como o Bolsa Família (cerca de R$ 25 bilhões do orçamento público federal) e o bolsa Miami (cerca de R$ 47 bilhões de evasão de divisas), ameaçado pela depreciação cambial do real, para não falar da potencial insustentabilidade do bolsa juros (cerca de R$ 200 bilhões do orçamento público federal), que devora recursos vitais para a qualidade de vida de milhões de famílias. Somando a esse montante concretamente dispendido o pagamento do principal da dívida pública, sob a forma de nova dívida a ser paga, chegamos ao patamar de 42% do orçamento federal ou cerca de R$ 900 bilhões.
Mesmo sendo o assunto tema de poucos cartazes nas ruas, seus beneficiários diretos e indiretos não cansam de ameaçar com retrocesso econômico aqueles que apresentam propostas em prol do fim da vandalização do erário público e da desordem das políticas públicas causados pela ditadura do superávit primário, tachando de “estapafúrdia” e “próxima do ridículo” a ideia de um freio nesse sangramento sem fim, que une no mesmo barco credores e governos, sejam eles de qual partido for: PMDB, PSDB ou PT.
O espectro da instabilidade política não assusta somente os grupos no poder e seus dependentes mais diretos, mas até mesmo os setores oposicionistas não beneficiários, temerosos de outro retrocesso, aquele ligado ao fim das liberdades conquistadas na dura batalha pela redemocratização — que lhes custou a vida de inúmeros companheiros — e que para eles é uma ameaça proveniente mais da esquerda do que dos rentistas, embora a esta altura seja difícil subestimar a ameaça que vem da economia.
O medo do retrocesso entre os petistas, por sua vez, é buscado em outro lugar, na tradição republicana elitista e sua capacidade de instrumentalizar as Forças Armadas em prol dos conservadores — pelo menos desde 1954. O medo do “golpe das elites” impregnou setores das novas lideranças assustadas pelas potências contraditórias liberadas nas manifestações de rua, embora esse sentimento não pareça capaz de paralisá-las de todo, servindo, todavia, como um exemplo do modo como o petismo ainda consegue alguma ascendência sobre seus dissidentes.
O retrocesso que, todavia, salta aos olhos depois de junho — embora os elementos já estivessem todos bem claros antes para quem quisesse encará-los com o mínimo de honestidade intelectual — é o da silenciosa corrosão das instituições democráticas, acicatada pela derrama fiscal da conta financeira do Estado, que não só enfraquece a política pública, como ainda a entorpece pela enorme capacidade de financiamento de campanha. O fracasso oposicionista de forças diversas, como o PPS e o Psol, em dar resposta ao vazio deixado pela agenda petista de democratização da República — vazio este mascarado pela intensa propaganda oficial, as pesquisas de opinião e vãs esperanças em torno de instrumentos de participação direta, como o Consocial — deixou para as ruas a tarefa de enfrentá-lo, alimentando os medos atávicos que vemos florescer de todos os lados e com um vigor preocupante em seu potencial paralisante; se não das ruas, pelo menos das velhas lideranças que poderiam vir ao socorro das novas e ainda desorientadas e relativamente incapazes de direcionar sua luta no sentido da agenda construtiva (governo).
Não só os partidos oposicionistas de esquerda falharam em seus diagnósticos e terapias; também a intelectualidade jovem faltou ao encontro com as ruas. Essencialmente acadêmica e beneficiária da expansão dos gastos públicos na fase da bonança lulista, tal setor, guiado por teorias pretensamente neutras e meramente instrumentalistas ou filosofias integracionistas, enxergou na relativa resignação popular e no desligamento do mundo parlamentar, emoldurado pelo voto, uma poliarquia em franca fase de consolidação e, por isso, deixou de pensar o mundo concreto das coisas em suas contradições para dedicar-se a reforçar a mensagem ideológica progressista do petismo e de sua paz social, seguindo de perto seus mestres encastelados nas agências fomentadoras de carreiras.
Vemos agora, em meio a todas essas dificuldades e insuficiências, abrirem-se diante de nós as várias portas políticas cujas chaves pareciam sob o controle do bloco no poder. Assim, renasce o esforço teórico-analítico de desvendar a realidade em busca da solução dos problemas reais e não daqueles imaginários, derivados de ideologias hegemônicas e tendentes ao mero esforço individual pelo qualis acadêmico — que vem esgotando as potências intelectuais de seguidas gerações.
A primeira dessas portas a investigar seria a democrático-representativa, que, apesar de claramente refletida na postura exibida pela maioria dos manifestantes — não obstante os embaraços ideológicos do anarquismo e do romantismo —, tende a ser aberta de maneira tímida em função tanto dos embaraços implícitos à arquitetura dos novos movimentos, como pela fragmentação e desorientação das forças políticas e intelectuais, oposicionistas e situacionistas, capazes de dar-lhes uma boa direção.
Em particular, deve-se destacar o paradoxo de ser a porta mais coadunada com a Constituição de 1988 a de mais difícil abertura, dificuldade esta plasmada na visão dos herdeiros do comunismo democrático — que se afirmou em 1967, no interior do PCB, como antídoto à esquerda autoritária militarizada —, mais preocupados, à semelhança inversa dos petistas, com o “golpismo de esquerda” do que em interpelar as ruas na perspectiva de sua bandeira histórica do aprofundamento democrático com as ruas.
Adeptas, em tese, dessa saída, as alas mais conservadoras do oposicionismo, doutrinariamente avessas à representação ativa dos cidadãos, embora não ao empreendorismo econômico, preferem pegar o desvio à direita do liberal-representativo, onde podem desfrutar do conforto de uma democracia sazonal e limitada, fingindo não entender que ela está no centro da atual crise e que tende a agravá-la, deixando de ser, portanto, uma alternativa real. A insistência desses setores em reduzir a crise ao desgoverno — certamente não de seus partidários — apenas explicita sua visão eleitoreira da política que, nas circunstâncias atuais, quando as ruas desfazem o fetiche da circulação das elites, encolhe as chances dos pescadores eleitorais de águas turvas e tende a pôr por terra as estratégias políticas em termos estritamente liberais.
Isso tudo acaba beneficiando a porta historicamente mais conhecida entre nós: a nacional-populista, que não apenas é forte em termos culturais, como tem potenciais lideranças mobilizáveis em variados espectros ideológicos. Embora historicamente de caráter socialmente democratizante e politicamente conciliador — ou seja, não necessariamente democrática em sentido político, mas certamente antípoda à tradição elitista republicana —, tal porta costuma se abrir sob o comando de lideranças carismáticas mais capazes de tirar proveito das vantagens eleitorais da desigualdade social do que propriamente de resolvê-las, inclusive usando as dificuldades das soluções para avançar sobre as instituições democráticas por vários vieses, como outrora o fizeram Quadros, Goulart e Brizola nos anos 1960.
As hesitações e insuficiências das forças postadas à frente da primeira porta criam boas perspectivas para as forças abrigadas na segunda, sendo já possível divisar, na relativa preservação da popularidade de Lula em meio à crise, um possível fio condutor para a (pseudo)solução eleitoral do impasse, ironicamente em detrimento das forças oposicionistas que reduzem tudo às urnas, com as mesmas regras que não lhes parece urgente mudar.
A última grande porta que se apresenta à mão das forças político-sociais ora em movimento era, até há pouco, tida como definitivamente fechada pelos oráculos do regime. Ocorre que de nenhuma perspectiva histórica digna do nome se pode deixar de considerá-la: a porta liberal-autoritária, com seu foco tradicional na manutenção da “ordem” e na expressão eleitoral estritamente controlada da vontade popular por meio de um sistema partidário restritivo e “responsável”. No limite, essa porta costuma se abrir quando todas as outras se fecham para os interesses fundamentais do capitalismo brasileiro. Os setores mais conservadores, da oposição e da situação, que temem o risco do retrocesso, muitas vezes, na verdade, o que fazem é anunciar, de maneira diplomática, seu engajamento no partido da ordem ao menor sinal de “descontrole popular” ou de “desordem econômica”. De certa maneira, a rebelião da base aliada do governo, depois de junho, prenuncia que o velho camaleonismo partidário começa a ganhar contornos programáticos conservadores tendentes a uma coalizão mais coerente. Mas, para que essa aposta se concretize, é necessário que Aécio ou Campos se credenciem eleitoralmente a liderá-la, visto que Serra e Marina são candidaturas mais controversas em relação ao sentido pretendido.
A viabilidade política de cada uma dessas portas, naturalmente, dependerá de forças que vão muito além daquelas envolvidas na revolta em si, e das respostas que sejam capazes de produzir em face dos desafios colocados e de novos que se insinuam – embora, como já foi assinalado, a ampliação da capacidade política dos revoltosos possa reservar a eles um protagonismo importante nesse processo. De qualquer modo, é de se esperar que, mesmo que a movimentação de rua arrefeça, diluída em reivindicações centrífugas de seus variados grupos — como seria normal esperar neste caso —, o certo é que ele deverá migrar para um estado de latência não menos ameaçador. Diante disso, é preciso explorar algumas variáveis que podem se colocar diante das portas em tela, beneficiando a abertura de umas em detrimento de outras.
Em especial, é preciso levar em conta a possibilidade da luta pelas reformas (política, judicial, legislativa, econômica etc.) nas ruas se confrontar com os exércitos eleitorais das forças oligárquicas acantonadas por detrás dos partidos fisiológicos, a partir de um sistema eleitoral que reluta em se reformar de imediato, por motivos aqui em parte já descritos. Neste caso, o sistema eleitoral prosseguirá intacto em sua capacidade cooptadora, alimentando o real perigo de sérios enfrentamentos de rua entre as forças da mudança e o infeliz exército dos dependentes das oligarquias, que, no controle de vastos setores do Estado, não teriam por que não usar desses recursos para manter seu caminho livre ao poder. Tal enfrentamento, porém, só seria possível se a crise não afetasse a confiança dos dependentes na estabilidade do pacto oligárquico que os sustenta em diferentes níveis da escala social — caso contrário, eles poderiam se juntar aos revoltosos, não sem prejuízos éticos ao movimento de junho.
O potencial confronto entre os dois setores sugere uma luta de classes às avessas, com as classes médias autônomas, de peso amplificado pelas políticas de inclusão desde o governo Itamar, representando a massa popular do Brasil moderno, enquanto os dependentes surgem como expressão do ciclo modernizante abortado pelo colapso do “milagre brasileiro” (1967-73), com seu lumpesinato acantonado nas franjas do sistema legal — e mesmo em seu interior — na forma de um exército de reserva de baderneiros prontos a desempenhar o papel de ponta de lança das oligarquias, e outros setores dependentes, na resistência de rua às mudanças.
Mesmo na hipótese de que a crise econômica, inibindo as engrenagens cooptativas do Estado, desarme a armadilha montada com os marginais, é de se esperar que seu engajamento no outro lado se faça sob a égide do mais desabrido vandalismo, em oposição aos sentimentos democráticos das ruas. A antevisão das classes dirigentes em relação a esse perigoso contexto, para além do mero instinto de sobrevivência, está por trás do destravamento das instituições republicanas que estamos assistindo em todos os poderes do Estado e até em setores do setor privado — como se vê no congelamento dos altos juros privados mesmo em face da recomposição da taxa Selic; o que não significa que elas tenham qualquer escrúpulo em utilizar a possível desordem em proveito da alternativa autoritária já referida.
Ansiosos por manterem-se preservados da fúria popular, tanto os políticos como os rentistas atuam com doses maciças de demagogia e publicidade, num esforço de desassociação como grandes beneficiários das políticas públicas de regulamentação frouxa, quer da vida pública, quer do sistema financeiro e sua cobrança extorsiva de taxas de empréstimos automáticos aos setores populares, assim como da imensa dívida pública, cujo custo orçamentário é quase o dobro do investimento público federal (R$ 108,7 bilhões), com significativo impacto sobre a qualidade dos serviços públicos.
A agenda concreta
O desafio que está posto para todas as forças políticas a partir das manifestações de junho foi, na verdade, imposto por décadas de desvirtuamento institucional sob o beneplácito de coalizões dirigidas por elites organizadas no PMDB, PFL-DEM, PSDB e PT. Querendo ou não, é chegada a hora de encarar de frente a fatura de uma “consolidação democrática” que obstruiu os canais parlamentares e políticos (partidos) por onde deveriam fluir a representação e deixou burocratizar os novos instrumentos de participação direta, como os conselhos de direitos, relegando ainda à marginalidade as consultas populares constitucionalmente previstas sobre variados assuntos temáticos que o Parlamento não quer ou não se mostra capaz de equacionar. A agenda da re-redemocratização, inferida das ruas, pode ser, assim, resumida como a restauração da representatividade das instituições políticas e a desburocratização das novas agências participativas, ao par do desengavetamento das consultas populares e da inovação institucional em direção a uma democracia mais participativa e coetânea.
A situação de hoje, em função das largas e profundas distorções produzidas ao longo de mais de duas décadas, exige um esforço reformador quase constituinte, e, deste ponto de vista, é inequívoco o acerto das forças políticas que propuseram a Constituinte específica já. Embora se possa obstar uma série de argumentos políticos e jurídicos, isoladamente válidos, contra a proposta, jamais se pode defini-la como “mera manobra diversionista” diante da gravidade da crise. Seja por quais canais será enfrentada a questão — a Constituinte teve o mérito de dar a dimensão correta, embora, talvez, sob a forma errada, ao problema que as ruas desnudaram —, o fato é que a resposta tem que ser urgente; não há tempo a perder para aqueles que querem o aperfeiçoamento e o desenvolvimento das instituições democráticas de 1988. A excessiva cautela e o medo da participação, expostos pelos partidos moderados da situação e da oposição, em conúbio, só podem ser entendidas pelos setores mais avançados da sociedade brasileira como um pacto suprapartidário contra a mudança ou por mudanças controladas desde cima. A velha fórmula da mudança lenta, gradual e segura, que está na base do modelo de dominação capitalista brasileiro com a preponderância do conservadorismo sobre o liberalismo, como nos mostraram Caio Prado Jr., Sérgio B. Holanda, Raimundo Faoro e Florestan Fernandes, entre outros, é parte do problema a superar, não da solução [4].
O risco que o PT, em particular, corre sustentando sua proposta de urgência em sintonia geral com as ruas — que, naturalmente, pode esconder pretensões políticas antidemocráticas oriundas de seus setores populistas e extremistas — é o de empurrar sua base aliada conservadora em direção à oposição liberal-conservadora às vésperas de importantes definições de alianças eleitorais, risco este que embute outro de igual potência para os oposicionistas: o de serem identificados com a mesma base parlamentar responsável pela crise — o que encontra confirmação histórica no fato de que a oligarquia política da era petista não ser de natureza diversa daquela do período tucano. No momento, parece claro que a oposição liberal-conservadora aposta suas fichas na aproximação com a base governista em decomposição, sem se importar muito com os odores que ela exala, e já proclama o fim da era Lula sem se dar conta de que é forte candidata a dividir o ônus da crise com o mesmo governo que pretende derrotar nas urnas.
A reforma política, designação genérica a um conjunto de reformas que abarca desde o sistema eleitoral até a reforma judiciária concernente à contenção dos crimes cometidos no âmbito dos três poderes, passando pelo sistema partidário e legislativo, deve ser encarada como um verdadeiro desafio programático que envolve todas as forças sociais, dentro e fora do Estado. Concebê-la de outra forma é não entender o transbordamento democrático das ruas e sinalizar para elas, à moda de Schumpeter [5], condescendência com o político profissional e seus protopartidos, o que patenteia escassa compreensão da natureza da crise e do verdadeiro significado da herança de 1988.
A reforma política inadiável pode ser levada a cabo combinando-se múltiplos instrumentos: comissões parlamentares abertas à participação social, projetos de lei de iniciativa popular, plebiscitos e referendos podem ser utilizados numa hierarquia de temas por critérios temporais, meritocráticos e consensuais, visando respostas de curtíssimo e curto prazo. Se a sociedade, em termos gerais, tem dificuldade em entender a reforma política em toda a sua extensão técnica, o mesmo não se pode dizer de seu sentido político geral, claramente intuído pelos manifestantes ao bradarem não contra a democracia, mas contra o funcionamento do sistema democrático, não contra o Estado, mas contra seus aparatos burocráticos, não contra seus técnicos, mas suas soluções etc. O problema parece residir na outra ponta, onde grande parte dos dirigentes, lideranças e especialistas demonstram genuína dificuldade em compreender o sentido geral dessas postulações, num preocupante sintoma, no caso dos últimos, de como o sistema universitário vem especializando seus técnicos de maneira acrítica e unilateral em nome de um mérito que reduz o conhecimento à progressão num ranking quantitativo de iniciativas formais, não raro estranhas à realidade e à natureza mesma das coisas.
Não é tarefa fácil reverter esse quadro diante da magnitude das distorções acumuladas em largos setores da vida social, do setor público ao educacional, passando pelo político, num despreparo e desvirtuamento cultural que, à luz de Sócrates (469-399 AC), não pode ser subestimado como um dos elementos básicos do amesquinhamento da nação como um todo. Também nesse ponto, é preciso se espelhar na postura majoritariamente madura e compreensiva das ruas para afastar os medos e restaurar a capacidade de fazer política em sentido real, e não meramente instrumental, com a sociedade e não a despeito dela.
Assim como a luta pela redemocratização só pôde evoluir na mesma medida do engajamento social na arena política, a re-redemocratização necessita da mesma energia vital. Esse é o desafio que devemos encarar por nosso compromisso democrático, que não pode ser confundido, à guisa de projetos eleitorais, nem com a aposta populista da manipulação dos pobres por meio de bolsas nem com a redução liberal da democracia às instituições esclerosadas titulares da representação – que as oligarquias consideram suas.
É justo que as oposições, moderadas ou radicais, queiram assumir os governos por meio do voto na esteira da crise política; afinal, cabe ao situacionismo, em seus 11 anos de poder na esfera nacional, parte da responsabilidade pela incompetência denunciada nas ruas. Mas não conseguirão fazê-lo ao arrepio das expectativas populares mobilizadas, sob pena de acabarem identificadas com a opressão que se quer eliminar — identificação esta que, diga-se de passagem, o PT vem fazendo com sucesso desde 2002 contra seus principais adversários, apesar de se basear nela para governar desde então. Ou, se conseguirem, correm o risco de cair vitimadas pelas mesmas alianças que fez o PT, incapaz de resolver os graves problemas nacionais, e, de quebra, agravar a dominação oligárquica à sombra de uma Constituição que eles sempre subestimaram.
A massa jovem que irrompeu nas ruas é órfã da democracia em dois sentidos: um novíssimo, representado pela corrosão ético-programática do PT nos ambientes dos podres poderes; outro, tão antigo quanto a própria República, representado pela histórica subordinação do voto das parcelas mais pobres da população à vontade das oligarquias geolocalizadas, detentoras da maquinaria estatal e do poder econômico. Às gerações mais velhas e experimentadas da luta política, estejam onde estiverem, cabe o despreendimento e o descortínio para ajudar as novas gerações a virar esta página nova e velha de nossa história, numa perspectiva democrática, ou seja, longe dos velhos cacoetes de caráter autoritário (blanquista) ou oportunista (social-democrata).
Notas
[1] In P. Luquet et alii, A comuna de Paris, Rio de Janeiro, Laemmert, 1968.
[2] A respeito da diversidade e complexidade desse processo na Rússia e na Alemanha, ver B. Moore, Injustiça – as bases sociais da obediência e da revolta, São Paulo, Brasiliense, 1987.
[3] Ricos detentores da dívida pública ingurgitada de juros e da dívida privada (cheque especial e cartão de crédito) com taxas de agiotagem chanceladas pelo BC.
[4] Respectivamente, Evolução política do Brasil (1933), Raízes do Brasil (1936), Os donos do poder (1958) e A revolução burguesa no Brasil (1975).
[5] Capitalismo, socialismo e democracia (1942).
* Hamilton Garcia de Lima, graduado em Sociologia e Política pela PUC-RJ e mestre em Ciência Política pela Unicamp, é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf-Darcy Ribeiro). Este texto está na edição de agosto da revista Gramsci e o Brasil.
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