Ciro Barros e Giulia Afiune, da Agência Pública
“Por ser o estádio um ambiente que tem uma série de permissões nas relações masculinas – carinhos, afetos, às vezes até mesmo agressões – é necessário que esse ambiente seja considerado seguro para os homens. Para garantir essa suposta ‘segurança’, os torcedores precisam reforçar a sua masculinidade. E uma das coisas que melhor reforça a masculinidade na nossa cultura é a homofobia. Por isso ela aparece de forma tão gritante”, afirma o pedagogo e professor da UFRGS, Gustavo Andrada Bandeira, autor da tese de mestrado “‘Eu canto, bebo e brigo…alegria do meu coração’: currículo de masculinidades nos estádios de futebol”.
Para Bandeira, esse é o motivo da rejeição às torcidas gays: “Se a torcida do Corinthians, do Grêmio ou do Internacional for a primeira a levantar uma bandeira pró ações afirmativas, ela poderá ser chamada de a ‘torcida gay’, e as torcidas acham que isso é um problema”, diz.
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Para Marco Antonio Bettine de Almeida, professor livre docente na Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da EACH-USP, a reação é “natural” num espaço que sempre foi dominado pelo masculino. “A partir do momento que as agendas de visibilidades desses grupos excluídos, que tiveram seus direitos cerceados, que são espancados, é natural, vendo a representação que o futebol tem no Brasil, começar toda essa movimentação de garantir uma representação nesse espaço eminentemente masculino, do macho, do falo”. Para ele, no entanto, há espaço para negociação entre os grupos LGBT e as organizadas. “Uma mulher no estádio é aceita, por exemplo, mas tem que representar os papéis dentro do estádio, que é torcer, xingar, participar. As torcidas gays ou não gays têm que incorporar um pouco da história desse espaço do torcer. E conhecer, minimamente, os códigos, senão vai gerar conflito. Porque o espaço é um espaço sagrado e tem uma carga cultural muito forte”.
Bandeira discorda. “Se é uma torcida gay, que ela tenha comportamentos diferentes das torcidas não gays. É sempre complicado quando a gente quer transgredir as regras de gênero sexual num ambiente muito marcado. Mas me parece que seria muito mais interessante se eles fizessem algo diferente”. Foi essa a aposta da Coligay, a primeira torcida homossexual do país, que em plena ditadura militar conquistou seu espaço dentre os torcedores do Grêmio.
Uma inspiração para o caso brasileiro pode ser a GFSN (Gay Football Supporters Network, Rede de Torcedores de Futebol Gays, numa tradução livre). Fundada em 1989, a associação do Reino Unido tem diversas iniciativas para a inserção do público LGBT no futebol. “Estamos em contato permanente com muitos clubes para recomendar políticas anti-homofóbicas por parte deles”, afirma Simon Smith, do departamento de comunicação. “Ajudamos, por exemplo, a consolidar os Gay Gooners, a torcida LGBT do Arsenal e conseguimos o apoio formal de representantes do Liverpool e do Everton para a parada do orgulho LGBT da cidade de Liverpool. Dentro de campo, organizamos há dez anos campeonatos de futebol voltados ao público LGBT para a inclusão no esporte”, conta Smith.
A GFSN também registra com precisão britânica a ocorrência de gritos e cânticos homofóbicos nos estádios – e faz campanha permanente contra eles. “Na temporada passada, os torcedores do Brighton & Hove Albion FC sofreram com cantos homofóbicos em 72% dos jogos que disputaram. Nós documentamos isso e enviamos à FA (Football Association, a CBF inglesa), que ainda não tomou nenhuma atitude. Mas nós continuamos pressionando”, diz.
No próximo ano, a Copa do Mundo promete ser palco de discussão sobre homossexualidade – pelo menos em São Paulo, onde mais de 40 mil pessoas são esperadas para acompanhar a transmissão dos jogos nos telões da Fan Fest, no Vale do Anhangabaú, centro da cidade. Ali, a prefeitura planeja realizar uma intervenção para discutir homofobia, com direito a exibição de vídeos em telas e distribuição de folhetos sobre o tema. Outra ação que está sendo estudada é transmitir os jogos em telões no Largo do Arouche, um “point” LGBT da cidade, para esses torcedores.
Um pouco de história: em plena ditadura, nascia a Coligay
A tentativa de formar uma torcida organizada gay não é novidade no futebol brasileiro. Foi no dia 10 de abril de 1977, quando o Grêmio foi disputar uma partida pelo Campeonato Gaúcho contra o Santa Cruz (RS), que a novidade estampava as arquibancadas do estádio Olímpico: cerca de 60 torcedores homossexuais impressionaram os demais pela festa que faziam. Era a Coligay, a primeira torcida organizada assumidamente gay do Brasil. A Coligay foi fundada por Volmar Santos, que hoje é colunista social do jornal O Nacional, de Passo Fundo (RS).
Gremista fanático, Volmar nunca deixou de frequentar o Olímpico. “Eu ia aos jogos e achava as torcidas muito quietas, sem animação nenhuma. Foi quando eu resolvi formar uma torcida organizada. Aí me veio a ideia de fazer uma torcida gay”, conta. A ideia surgiu quando ele administrava a boate Coliseu, em Porto Alegre, voltada ao público gay, que não tinha muitas opções na capital gaúcha. O nome Coligay vem do nome da boate. “Foi aí que eu mandei fazer uns kaftas, uma espécie de túnica com as cores do Grêmio, e fomos torcer no estádio. A nossa marca era nunca deixar de cantar, fazer festa, apoiar sempre o nosso time. E a cada jogo a gente inventava coisas diferentes”, relembra. A torcida ganhou fama de pé quente: em 1977, com a Coligay nas arquibancadas, o Grêmio quebrou um jejum de oito anos sem títulos estaduais.
Naquele longínquo ano de 1977, o mesmo Corinthians chegou a convidar a torcida gay a prestigiar os seus jogos – e a Coligay esteve presente na quebra do jejum de 23 anos sem títulos do Timão. “Ganhamos fama de pé quente e o Vicente Matheus [ex-presidente do Corinthians] nos convidou. Assistimos o título do Corinthians contra a Ponte Preta de dentro do Morumbi, vestidos como gremistas”, recorda.
A Coligay durou cerca de seis anos, e acabou em 1983. “A torcida era muito centrada na figura do Volmar. Quando ele teve que ir para Passo Fundo, não teve uma liderança que conseguisse dar continuidade”, conta Leo Gerchmann, repórter especial do jornal Zero Hora, autor de um livro sobre a Coligay que deve ser lançado nos próximos meses.
Segundo Léo, a torcida enfrentou muita resistência por parte do Grêmio e da sua organizada Eurico Lara. “Temendo agressões, eu até coloquei o pessoal pra fazer karatê pra nos defendermos de possíveis ataques”, diz Volmar. Assim, na ocasião em que foram de fato atacados por torcedores do Gaúcho, clube de Passo Fundo, durante o Campeonato Gaúcho de 1977, a Coligay colocou os agressores para correr. “Com o tempo o clube e a própria torcida adotaram a Coligay. Alguns conselheiros gremistas até deram apoio financeiro à torcida. Acho uma página bonita da história do Grêmio, de aceitação da diferença”, diz Gerchmann. “Houve outras experiências de torcidas gays, coisas efêmeras no Cruzeiro, Fluminense e até no Internacional, que teve a Inter Flowers. E dois anos depois da Coligay, teve a Fla-Gay fundada pelo carnavalesco Clóvis Bornay, apesar dele ser vascaíno”.
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