Bráulio Santiago Cerqueira *
Quando do envio pelo governo Dilma ao Congresso, em agosto de 2015, da proposta orçamentária para 2016 com uma previsão de déficit primário de 0,5% do PIB, a imprensa especializada, dentre outras reações negativas, destacou que nunca se propôs na história recente um projeto de lei com desequilíbrio fiscal e que o orçamento, por definição, tem de estar equilibrado:
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“É a primeira vez na história contemporânea que um governo não consegue fechar as contas para o exercício posterior e apresenta um projeto de lei com desequilíbrio fiscal. Orçamento, por definição, tem que ter equilíbrio […].” (Valor Econômico, Cláudia Safatle, 30/8/2015).
Cerca de um ano depois, o anúncio pelo governo Temer de uma meta de déficit primário de 2,0% do PIB para 2017 não causaria desconforto algum:
“Definida a meta fiscal para 2017 [de menos 2,0% do PIB], fruto de uma nova política para o gasto, um campo de trabalho até então desprezado se descortina para os gestores públicos: avaliar se cada real da despesa orçamentária cumpre com seu objetivo.” (Valor Econômico, Cláudia Safatle, 8/8/2016).
Deixando de lado juízos de valor subjetivos sobre um ou outro governo, a emergência de déficits primários no Brasil desde 2014 suscita, dentre outras, as seguintes indagações: até que ponto é extraordinário ou não países conviverem com resultados fiscais primários negativos, especialmente nas fases de baixa dos ciclos econômicos? O que os dados de resultados fiscais de países de renda média como o Brasil têm a dizer sobre as especificidades de nossas finanças públicas na crise atual?
Antes de avançar as respostas, cabe distinguir aspectos contábeis de aspectos econômicos na discussão orçamentária. De um ponto de vista estritamente contábil, desde Luca Pacioli, no século XV, sabe-se que o total de débitos deve igualar o total de créditos dos balanços, assim como o total de despesas deve igualar o total de receitas nos orçamentos, privados ou públicos. No Brasil do século XXI isto não mudou: no orçamento público constam todas as despesas da administração pública em necessário equilíbrio com as previsões de todas as receitas, incluindo operações de crédito. E a proposta orçamentária para 2016, assim como a de 2017, 2018 e de todos os anos, respeitou isso: o total de receitas, incluindo receitas tributárias e operações de crédito, cobriu o total de despesas previstas em consumo do governo, investimento público e também com juros e amortizações da dívida.
Já do ponto de vista econômico-fiscal, há déficit (ou superávit) primário em um exercício quando as despesas, exceto juros, superam (são inferiores) as receitas não financeiras. O resultado nominal representa a diferença entre receitas, sem contar operações de crédito, e despesas incluindo os juros da dívida pública. Na teoria econômica não há consenso sobre os efeitos do déficit ou superávit fiscal (tanto primário quanto nominal) sobre a atividade, inflação, setor externo, e mesmo sobre a sustentabilidade das contas públicas, havendo economistas que pregam a austeridade/equilíbrio fiscal a todo momento (deficit hawks, falcões), outros que defendem déficits em recessões e superávits em períodos de crescimento (deficits doves, pombos), e ainda aqueles que não se importam com o tamanho do déficit ou superávit até que o pleno emprego seja alcançado (deficits owls, corujas). Um bom resumo destas diferenças pode ser consultado em Universidade do Missouri.
Agora voltando à nossa pergunta, afinal, são extemporâneos os déficits primários registrados pelo setor público no Brasil desde 2014?
Os dados dos países de renda média, tal como classificados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), mostram que após a crise financeira global de 2008, a queda do crescimento, ao incidir negativamente sobre o preço das commodities e sobre a receita pública, tornou bastante comum a convivência destes países com déficits primários. No Brasil não foi diferente, ou melhor, no período abertamente recessivo, instaurado em fins de 2014, os déficits primários situaram-se abaixo da média internacional, enquanto antes disso os superávits primários brasileiros superaram a média.
Resultado Primário do Gov. Geral: Brasil x Países de Renda Média (% PIB)
Fonte: FMI, Fiscal Monitor Database, consulta em 2 de fev. de 2018
* Projeções, exceto Brasil, dados realizados, Banco Central do Brasil, resultado primário do setor público consolidado
** Inclui todos os países emergentes e de renda média classificados como tal pelo FMI
Passando à segunda pergunta, o que, então, de mais característico os dados internacionais de resultados fiscais revelam sobre o Brasil? Se a trajetória do resultado primário brasileiro não fugiu à regra dos países de renda média experimentando deterioração após a crise financeira global de 2008, o mesmo não pode ser dito dos gastos com juros da dívida pública, responsáveis por déficits nominais (que incluem juros) muito mais elevados do que a média das economias em desenvolvimento. A explicação para para isso passa por taxas de juros reais elevadas para os padrões internacionais, pelo tamanho relativo da dívida pública, maior que a dos demais países incluídos na comparação, e pelo acúmulo de ativos no setor público com rendimento menor que os passivos indexados às altas taxas de juros.
Resultado Nominal do Gov. Geral: Brasil x Países de Renda Média (%PIB)
Fonte: FMI, Fiscal Monitor Database, consulta em 2 de fev. de 2018
* Projeções, exceto Brasil, dados realizados, Banco Central do Brasil, resultado nominal do setor público consolidado
** Inclui todos os países emergentes e de renda média classificados como tal pelo FMI
A contraface da alta conta de juros do setor público brasileiro são os elevados lucros das instituições financeiras no país, que mesmo em meio a maior recessão da história seguem crescendo, também em função dos spreads excessivos praticados nos setor. Somente em 2017, os 4 maiores bancos registraram aumento de 21% nos lucros, que chegaram a R$ 64,9 bilhões (Valor Econômico, 23/2/2018).
Além dos efeitos concentradores das despesas com juros, explicitados nos superlucros das instituições financeiras, estimativas do IPEA apontam que este tipo de gasto público se traduz em estímulo menos que proporcional à produção, com multiplicador do PIB menor que a unidade, 0,71 (ou seja, para cada R$ 1,00 de despesa pública com juros, a produção cresce R$ 0,71). O mesmo estudo, em contraste, estima multiplicadores para educação, saúde e previdência (regime geral) da ordem de, respectivamente, 1,85, 1,70 e 1,23.
Não terá sido por indisponibilidade de “avaliações de cada real da despesa orçamentária” que o governo congelou por 20 anos o gasto social no país. Muito menos por avaliá-la.
* Mestre em Economia, auditor federal de Finanças e Controle, secretário-executivo do Unacon Sindical.
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