Bajonas Teixeira de Brito Junior*
Dr.Rameiro veio buscar-me. Não sei por que o chamam de “doutor” e duvido muito que ele próprio saiba encontrar a razão desse tratamento. A única explicação verossímil seria a de que todo brasileiro bem colocado na vida já nasce com direito a esse título (…). (Von Binzer, Ina, Os Meus Romanos – Alegrias e Tristezas de uma Educadora Alemã no Brasil, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. Carta de 27 de maio de 1881)
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Menciona-se (…) a presença de estudantes de cor já nos primeiros anos da Escola de São Paulo, aos quais, por sinal, um dos professores se recusava a cumprimentar alegando que negro não podia ser doutor. (Carvalho, J.M., A construção da ordem: a elite política imperial. Brasília: UnB, 1980, p.60)
Uma sociedade em que uns nascem doutores, sem precisar tornarem-se, e outros não o são, mesmo que se tornem, será um tanto excêntrica. Por estranho que soe este raciocínio, que surge do confronto das duas citações acima, nós, que estamos na Universidade Pública brasileira, sabemos que isso é assim mesmo. Os alunos, em sua esmagadora maioria, são crias dos cursinhos. O que é um cursinho? Nada mais que uma escola de boas maneiras, para a classe média, preparando-a para este ambiente exclusivo que é a Universidade Pública. Entrar na Universidade Pública é, antes de tudo, um privilégio, isto é, uma espécie de marca que se adquire não por capacidade, mas por nobreza. Na verdade não é algo que se adquire, mas que já se tem. Entrar na universidade, só confirma que já se tem a tal fidalguia. Quem precisa se tornar se já é?
Fidalgo, a palavra portuguesa para nobre, significa justamente “filho de algo”. Melhor dizendo, filho de alguém. Há uma tendência na sociedade brasileira ao pavor da mudança social. O ideal é como no poema em que, de dentro um ovo inteiramente branco, sai um pelicano. Que põe outro ovo, inteiramente branco, do qual sai outro pelicano…. Ad nauseam. Ad infinitum. O efeito disso é uma paisagem imutável, como uma floresta artificial de eucaliptos. É preciso quebrar o ovo, inteiramente branco, e fazer uma omelete, em que se misturem as cores da clara e da gema. A política de cotas pode fazer isso? Tem forças para quebrar a casca do biopoder patriarcal inteiramente branco?
Se entrar na universidade é um privilégio, o que resta a fazer nela? Nada a não ser enquadrar-se dentro dos rituais diários da busca constante do privilégio. Este desejo aparece numa infinidade de demandas por chances exclusivas com que um professor lida diariamente no ensino superior público: entregar os trabalhos depois dos prazos; obter boas notas por simpatia; ir às aulas, mas sem fanatismo; estudar, mas o mínimo possível, e só quando der; aproveitar todo feriado, que começa uma semana antes, e termina, uma depois; chegar atrasado às aulas; sair cedo por motivo urgente; comemorar intensamente todo ponto facultativo; enforcar sempre que possível; matar quando necessário, etc. etc. A luz no final do túnel é o diploma. E a realidade pós-diploma é, preferencialmente, um emprego público conquistado com o suor e o esforço de uma indicação. Os melhores, isto é, os mais privilegiados, se tornam dirigentes de repartições públicas ou coisa do gênero, adaptando-se facilmente à rubrica dos cargos comissionados. Geralmente, estes afortunados foram os piores alunos na universidade que, por uma distorção típica do espelho social brasileiro, são vistos como exemplos a serem seguidos.
Importa a competência? Não. Há lugar para os mais ambiciosos? De modo algum. Qualquer seriedade competitiva, natural para os americanos, alemães, franceses, chineses ou japoneses, é vista como atitude desviante e semi-imoral — são os tolerados, mas não amados, CDFs. Admira-se que numa tal sociedade, com uma fortíssima tara estagnante, se descubra muitas vezes que a universidade é uma fraude? Lembro de Costa Lima, que num texto interessante, dizia que os eventos de crítica literária no Brasil são mais encontros de comadres que acontecimentos intelectuais. E os de filosofia? E os de botânica? A universidade brasileira, calcada no exclusivismo de classe e de cor é, na verdade, uma grande fraude. Estou falando da Universidade Pública, a privada situa-se num patamar muito aquém e sequer como farsa se pode credenciar. Salvo as exceções bem conhecidas.
Veja-se que repudio inteiramente o discurso simplório que assevera que a entrada dos negros na Universidade Pública iria baixar o nível. Este, aliás, o discurso do ex-coordenador do curso de medicina da UFBA Antonio Natalino Manta Dantas, que se referiu à contaminação trazida pelas cotas, entre outros delírios, para explicar o fracasso do curso por ele coordenado. Minha posição é bem outra, ou seja, que hoje o nível é muito baixo, e as cotas certamente o elevaria.
Falando nisso, considere-se o vexame escandaloso do Instituto de Física da USP ocorrido recentemente. Colegas denunciam-se por plágio, o diretor se diz vítima de perseguição política, fala-se em dossiês “de
Mas, retomando o fio da meada, não creio que seja mera coincidência que, pela primeira vez em nossa história, a classe média tenha sido mobilizada, de forma ampla, por um debate referente à educação. A verdade é que nas últimas décadas ela se manteve apática diante desses temas. Mas a questão das cotas, diz respeito a algo que sempre foi o coração da legitimidade social da classe média — sua participação no privilégio pela via da educação. Dinheiro falta e continuamos todos fregueses do fim do mês; Poder, nem se fala. Mas um titulozinho de doutor, uma mesadazinha do CNPq, uma bolsa-sanduíche no exterior, e tudo vai se ajeitando. Mesmo, quando mais não seja, o gostinho de estar na Universidade Pública. E ter que dividir isso com os negros? Ora… faça-me o favor.
O governo Lula vende certos artigos de felicidade barata que iludem os olhos, mas vão dar dores de cabeça muito em breve. É o caso da proliferação do ensino superior de baixíssima qualidade, que apenas universaliza o ethos universitário no padrão classe média, permitindo que empresários inescrupulosos explorem o desejo generalizado em cada um de ser – por que não? – também um detentor de privilégios da classe remediada. A chegada do ensino superior aos subúrbios, às cidades do interior, o ensino à distância, o crédito para universitários, etc., propiciados através das arapucas credenciadas pelo MEC, é hoje uma grande desgraça (ia escrever “risco”, mas não seria certo. Não estamos diante de uma possibilidade, mas de um fato). Desgraça porque explora além da conta, não ensina, não forma, produz grandes taxas de evasão e, da promessa inicial de felicidade fácil, deixa no fim só uma dívida vultosa para o ex-estudante, que fica sem diploma e sem festa de formatura.
As cotas podem ser o antídoto a tudo isso? Seria pedir demais. As cotas podem, além de um pálido corretivo para a exclusão dos negros, ser um momento significativo na libertação das classes médias mais ou menos brancas. Isso se conseguir desfazer o vínculo entre privilégio e ensino superior. Pelas estatísticas do rendimento dos estudantes que ingressaram através das cotas, isso parece ser possível. Esses estudantes têm atuado de forma muito mais acadêmica e competitiva, e obtido um rendimento acima da mediocridade da média, isto é, da classe média. Seria preciso que este espírito se tornasse dominante dentro da universidade brasileira para que, enfim, umas boas vassouradas pudessem varrer os tempos de privilégios, de fixação nos canudos, de seminários de comadres, de curriolas que dominam recursos, de desprezo pelo aprendizado e fé nas indicações.
A Universidade pública seria beneficiada como os CEFETs que, hoje, apresentam um padrão de rendimento, dedicação e aprendizado que, em geral, parece bem superior às IFES (Confira-se os resultados do ENEM-2008). E isso, certamente, se deve à extração mais popular dos alunos das escolas técnicas e a seriedade com que encaram a formação técnica. O ensino superior precisa de mais ambição acadêmica. No Brasil, ambição continua sendo o traço dominante do (mau) caráter de violões de novela. A modéstia, o aparente desinteresse, a inclinação ao trabalho porco, tudo isso é atitude mais sábia ao (com sorte) futuro detentor de cargo comissionado (leia-se: administrador público). Mas nenhum sistema de produção intelectual se desenvolve sem ambição. Ambiciosos eram os jovens que cercavam Freud, ou os pesquisadores em torno de Einstein. Enfim, não existe vida intelectual sem ambição. As cotas no ensino superior público trariam uma injeção de sangue novo e de ambições legítimas.
Mas criar ilusões aqui é tolice porque 1) o ensino superior público é minúsculo em relação ao privado e, principalmente, em relação à atual dinâmica expansiva do ensino superior privado; 2) a forma como se expande o sistema privado, desmoraliza todo o ensino superior no país, e os privilégios que fazem jus e demais benesses ofertadas pelo governo federal, nem de longe encontram uma oposição que os possa reverter. Por isso, as cotas, que podem salvar os brancos, e minorar um pouco as injustiças em relação aos negros, também podem muito bem servir como um belo falso debate, que nos deixa cegos para a verdadeira implosão do já precário sistema superior de ensino com a expansão selvagem do ensino superior privado e, como se não bastasse, do ensino à distância privado.
Creio que só o surgimento de um movimento massivo, que reivindicasse uma radical reforma do ensino superior, pela qual, entre muitas outras coisas, se impusesse a obrigatoriedade das cotas a custo social zero também dentro das faculdades privadas (nas PUCs, nas São Tadeus, nas Cândido Mendes, nas Mackenzies, etc.), poderia acenar com algum futuro sucesso. Vamos torcer. Eu sou pessimista. Por enquanto, curso universitário ainda é uma miragem inscrita entre dois ritos de passagem que não levam a lugar nenhum — o trote e a festa de formatura.
Artigo publicado em 19/05/2008. Última atualização em 12/08/2008.
*Bajonas Teixeira de Brito Júnior é doutor em filosofia e avaliador de Cursos e Instituições do MEC.
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