É notório que a direita brasileira especialmente aquela articulação de forças que sempre ocupou o poder de Estado e o tratou como propriedade privada (patrimonialismo), apoiada pela mídia privada e familiar, estão se aproveitando das manifestações massivas nas ruas para manipular essa energia a seu favor. A estratégia e fazer sangrar mais e mais a presidenta Dilma e desmoralizar o PT e assim criar uma atmosfera que lhes permita voltar ao lugar que por via democrática perderam.
Se por um lado não podemos nos privar de críticas ao governo do PT (e voltaremos ao tema), mas críticas construtivas, por outro, não podemos ingenuamente permitir que as transformações político-sociais alcançadas nos últimos dez anos sejam desmoralizadas e, se puderem, desmontadas por parte das elites conservadoras. Estas visam ganhar o imaginário dos manifestantes para a sua causa, que é inimiga de uma democracia participativa de cariz popular.
Seria grande irresponsabilidade e vergonhosa traição de nossa parte entregar à velha e apodrecida classe política aquilo que por dezenas de anos temos construído, com tantas oposições: um novo sujeito histórico, o PT e partidos populares, com a inserção na sociedade de milhões de brasileiros. Aquela classe se mostra agora feliz com a possibilidade de atuar sem máscara e mostrando suas intenções antes ocultas: finalmente, pensa, tem chance de voltar e colocar esse povo todo que reclama reformas no lugar que sempre lhe competiu historicamente: na periferia, na ignorância e no silêncio. Aí não incomoda nem cria caos na ordem que por séculos ela construiu, mas que, se bem olharmos, é ordem na desordem ético-social.
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Essa pretensão se liga a algo anterior e que fez história. É sabido que com a vitória do capitalismo sobre o socialismo estatal do Leste europeu em 1989, o presidente Reagan e a primeira ministra Thatcher inauguraram uma campanha mundial de desmoralização do Estado, tido como ineficiente e da política como empecilho aos negócios das grandes corporações globalizadas e à lógica da acumulação capitalista. Com isso visava-se a chegar ao Estado mínimo, debilitar a sociedade civil e abrir amplo espaço às privatizações e ao domínio do mercado, até conseguir a passagem de uma sociedade com mercado para uma sociedade de puro mercado, na qual tudo, mas tudo mesmo, da religião ao sexo, vira mercadoria. E conseguiram. O Brasil sob a hegemonia do PSDB se alinhou ao que se achava o marco mais moderno e eficaz da política mundial. Protagonizou vasta privatização de bens públicos, que foi maléfica ao interesse geral.
Que isso foi uma desgraça mundial se comprova pelo fosso abissal que se estabeleceu entre os poucos que dominam os capitais e as finanças e a grandes maiorias da humanidade. Sacrifica-se um povo inteiro como a Grécia, sem qualquer consideração, no altar do mercado e da voracidade dos bancos. O mesmo poderá acontecer com Portugal, com a Espanha e com a Itália.
A crise econômico-financeira de 2008 instaurada no coração dos países centrais que inventaram esta perversidade social, foi consequência desse tipo de opção política. Foram os Estados que tanto combateram que os salvaram da completa falência, produzida por suas medidas montadas sobre a mentira e a ganância (greed is good), como não se cansa de acusar o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman. Para ele, esses corifeus das finanças especulativas deveriam estar todos na cadeia como criminosos. Mas continuam aí faceiros e rindo.
Então, se devemos criticar a nossa classe política por ser corrupta e o Estado por ser ainda, em grande parte, refém da macroeconomia neoliberal, devemos fazê-lo com critério e senso de medida. Caso contrário, levamos água ao moinho da direita. Esta se aproveita dessa crítica não para melhorar a sociedade em benefício do povo que grita na rua, mas para resgatar seu antigo poder político, especialmente aquele ligado ao poder de Estado a partir do qual garantia seu enriquecimento fácil. Especialmente os meios de comunicação privados e familiares, cujos nomes não precisam ser citados, estão empenhados fevorosamente nessa empreitada de volta ao velho status quo.
Por isso, as demonstrações devem continuar na rua contra as tramoias da direita. Precisam estar atentas a essa infiltração que visa mudar o rumo das manifestações. Elas invocam a segurança pública e a ordem a ser estabelecida. Quem sabe até sonham com a volta do braço armado para limpar as ruas.
Daí, repetimos, cabe reforçar o governo de Dilma, cobrar-lhe, sim, reformas políticas profundas, evitar a histórica conciliação entre as forças em tensão para juntas novamente esvaziarem o clamor das ruas e manterem um status quo que prolonga benefícios compartilhados.
Inteligentemente sugeriu o analista politico Jeferson Miolo em Carta Maior (7/7/2013):”Há uma grave urgência política no ar. A disputa real que se trava neste momento é pelo destino da sétima economia mundial e pelo direcionamento de suas fantásticas riquezas para a orgia financeira neoliberal. Os atores da direita estão bem posicionados institucionalmente e politicamente… A possibilidade de reversão das tendências está nas ruas, se soubermos canalizar sua enorme energia mobilizadora. Por que não instalar em todas as cidades do país aulas públicas, espaços de deliberação pública e de participação direta para construir com o povo propostas sobre a realidade nacional, o plebiscito, o sistema político, a taxação das grandes fortunas e do capital, a progressividade tributária, a pluralidade dos meios de comunicação, aborto, união homoafetiva, sustentabilidade social, ambiental e cultural, reforma urbana, reforma republicana do Estado e tantas outras demandas históricas do povo brasileiro, para assim apoiar e influir nas políticas do governo Dilma?”
Dessa forma se enfrentarão as articulações da direita e se poderá com mais força reclamar reformas políticas de base que vão na direção de atender a infraestrutura reclamada pelo povo nas ruas: melhor educação, melhores hospitais públicos, melhor transporte coletivo e menos violência na cidade e no campo.
(Texto publicado originalmente no blog de Leonardo Boff com a seguinte nota de rodapé: “Leonardo Boff não é filiado ao PT, é teólogo e escritor, da Comissão da Carta da Terra”)
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