Ciro Barros
Na semana do afastamento da presidente Dilma Rousseff, ao menos 20 lideranças indígenas consultadas pela reportagem da Pública em Brasília fizeram um diagnóstico comum durante o 13º Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização que ocorre anualmente na capital federal: se com Dilma Rousseff a situação dos índios estava difícil, com Michel Temer será pior.
Ainda que o governo afastado tenha sido o que menos homologou e declarou terras indígenas desde a redemocratização do país, a preocupação dos indígenas é que o governo interino reveja as decisões tomadas recentemente.
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O receio não é sem motivo. Na sexta-feira, 13, um grupo de lideranças indígenas se reuniu com o novo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. Ao ser questionado a respeito da possível revisão das demarcações, a resposta foi evasiva: “Qualquer coisa que for se fazer daqui para a frente, nós vamos conversar. Não houve nenhuma palavra minha, assim como não houve nenhuma palavra do presidente Michel Temer sobre revogação”.
No início desta semana, em entrevista à Folha de S.Paulo, Moraes voltou ao tema. Ele afirmou que irá rever “demarcações de terras indígenas que foram feitas, se não na correria, no apagar das luzes”. Ponderou, no entanto, que “qualquer revisão será feita em total diálogo” com as populações afetadas.
Tal indefinição coloca em debate a possível inconstitucionalidade na revisão dessas demarcações. As terras que mais preocupam os entrevistados pela Pública são as que foram delimitadas, declaradas ou homologadas nos meses finais da gestão petista. A mais recente delas, a do povo que mais sofre com assassinatos em todo o Brasil: os Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, área situada no epicentro dos conflitos armados que deixaram 390 indígenas mortos entre 2003 e 2014, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
O advogado do Instituto Socioambiental (ISA), Maurício Guetta, protocolou um ofício nesta semana no Ministério da Justiça, na Casa Civil e na Presidência da República em que argumenta que “os atos que reconhecem direitos territoriais indígenas não podem ser simplesmente revogados pelo Poder Executivo”. Ele cita a jurisprudência do STF, que já assentou que a demarcação de terras indígenas é um ato declaratório, que se limita a reconhecer direitos imemoriais que vieram a ser chancelados pela própria Constituição. “Quando o processo administrativo reconhece um território protegido pelo direito territorial indígena, o poder público é obrigado a publicar esse ato. Então, se o poder público já reconheceu a existência dos direitos territoriais indígenas nessas áreas, com base em processos regulares que contaram com laudos científicos e o cumprimento de todas as etapas do processo de demarcação, como o contraditório, não pode uma outra gestão do poder público simplesmente dizer que aquele reconhecimento não é válido. Isso é inconstitucional”, argumenta o advogado.
A sinalização de Temer aos ruralistas
No final de abril, Temer se reuniu com os membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Os deputados da FPA entregaram ao então vice-presidente o documento “Pauta Positiva – biênio 2016/2017”, no qual solicitam a “revisão das recentes demarcações de áreas indígenas/quilombolas”, além de pleitearem outras diversas questões de interesse do agronegócio.
Segundo o jornal O Globo, Temer teria declarado de forma extraoficial que reveria as medidas de desapropriação de terras para a reforma agrária e demarcação de terras indígenas tomadas no crepúsculo do governo petista. O jornal informou também que após a posse Temer teria pedido à Casa Civil que revisse os atos do antigo governo a partir do primeiro dia de abril deste ano.
Do início do mês passado ao momento do afastamento de Dilma, o Executivo acelerou o processo de demarcação de terras indígenas: foram nove áreas delimitadas pela Funai, doze terras declaradas pelo Ministério da Justiça e quatro terras homologadas pela Presidência da República.
O presidente da Funai, João Pedro Gonçalves da Costa, confirmou em entrevista exclusiva à Pública que a proximidade do impeachment ajudou a desengavetar delimitações e homologações de terras indígenas. “Com a iminência do final do governo, nós demos uma acelerada nesses atos”, reconheceu.
No dia seguinte à entrevista de Moraes à Folha, Costa publicou uma nota no site da Funai afirmando que “qualquer ato que vise desestruturar os direitos indígenas e os direitos aos seus territórios de ocupação tradicional ou que vise revisar os atos administrativos realizados é frontalmente inconstitucional”. Para ele, “qualquer revisão nos procedimentos realizados durante esta gestão e as anteriores só pode ser realizada diante da comprovação de algum tipo de vício de legalidade”.
“Essa situação não vai ser fácil”, diz Munduruku
O governo petista não foi poupado de críticas durante o Acampamento Terra Livre. “Nós, povos indígenas, conversamos assim. Se já com a Dilma, está desse jeito, avalie sem a Dilma. Todo esse tempo na briga com as violações dos nossos direitos crescendo, vai ser uma calamidade. Essa situação não vai ser fácil”, afirmou Antonio Pereira, do povo Munduruku Cara Preta, do Pará.
Durante a mobilização, entre os dias 10 e 13 deste mês, muito se falou sobre as intenções do PMDB, partido que encabeça no Congresso Nacional pautas anti-indígenas. Além da PEC 215, que transfere a competência da União na demarcação das terras indígenas para o Congresso Nacional, e da CPI da Funai e do Incra, tramitam outras pautas anti-indígenas nas duas casas.
Exemplo é a proposta do atual ministro da Planejamento, Romero Jucá, que propôs projeto de lei que regulamenta a mineração em terras indígenas. “A pauta indígena sempre foi uma pauta difícil no Brasil porque ela fere muitos interesses econômicos. Não acho que no governo Dilma tivemos uma plenitude de garantia dos direitos indígenas, mas a situação agora é muito pior porque aqueles que estão ocupando o Executivo são aqueles que já vinham pautando retrocessos na questão indígena e outras, como a questão quilombola e ambiental”, critica Márcio Meira, o mais longevo presidente da Funai (2007-2012).
Para Gustavo Vieira, membro do Movimento de Apoio aos Povos Indígenas (Mapi), o PMDB de Temer está “todo dentro” da CPI da Funai e protagonizando a PEC 215. “A gente está agora num processo de demarcação de áreas que têm muitos conflitos, áreas antropizadas há muito tempo. O governo Lula e Dilma, no final das contas, deu uma possibilidade de enfrentamento desse tipo de apropriação das pautas indígenas”, afirmou.Para a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sonia Guajajara, “o programa de governo do PMDB traz uma carga de anúncios de retrocessos”. A preocupação vai além das lideranças da Apib. “Recentemente ouvimos muito estas duas palavras: golpe e democracia. Será que o governo está sofrendo golpe? Eu não sei. O que eu sei é que os índios sofrem um golpe constante sobre seus direitos. PEC 215 é golpe!”, afirmou a liderança Sarapó Pankararu, de Pernambuco.
Ao fim do acampamento, já com o impeachment consolidado, um manifesto indígena subiu o tom ao dizer que o novo governo é “ilegítimo” e que “em nome da ordem e do progresso, pretende aprovar medidas administrativas, jurídicas e legislativas para invadir mais uma vez os territórios com grandes empreendimentos: mineração, agronegócio, hidrelétricas, fracking, portos, rodovias e ferrovias, entre outros”.
Até a publicação, a assessoria do Ministério da Justiça não retornou os pedidos de esclarecimento sobre as possíveis revogações em terras indígenas. Também o presidente da CPI Funai e Incra, Alceu Moreira (PMDB-RS), não respondeu ao contato da Pública.
O último ato da Funai no governo Dilma
Com cara de sono, meio amassado e abatido, o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves da Costa, se preparava na manhã seguinte ao afastamento da presidenta Dilma para seu último ato relevante à frente do órgão indigenista: a delimitação da terra indígena Dourados-Amambaí Peguá I, no sul do Mato Grosso do Sul. A terra está fincada em uma das regiões que mais concentram casos de assassinato de índios em todo o Brasil.
Na hora de assinar o relatório de identificação da área, Costa convocou as poucas lentes e gravadores que estavam na sede da Funai, um prédio espelhado no Setor Bancário Sul de Brasília, para presenciar o momento histórico. Naquela mesma manhã, Dilma Rousseff fazia seu primeiro discurso no Palácio do Planalto como presidente afastada após a abertura do processo de impeachment pelo Senado.
“Estamos assinando o relatório e publicando essa terra no dia de hoje. Será a última da minha gestão. Esse ato representa o compromisso da Funai e uma resposta à pressão anti-indígena daqueles que são contra o reconhecimento da tradicionalidade das terras do povo Guarani Kaiowá. Minha assinatura é a da Funai”, discursou o presidente.Apesar das comemorações, ele pediu cautela aos indígenas, alertou-os para que se preparassem para o contraditório e demonstrou preocupação com a ascensão do governo Temer em um contexto de “ruptura e violência contra a democracia”. “Em nome do meu povo Guarani Kaiowá, eu queria dizer que enquanto a gente viver a gente vai lutar. Hoje é uma parte da nossa vitória, mas a gente continua lutando, e nossa luta não vai parar por aqui. A gente vai enfrentar quem quer destruir a vida dos povos indígenas nesse país. O povo Guarani Kaiowá vive e vai continuar resistindo”, comemorou Elson Guarani Kaiowá, uma das lideranças presentes.
‘Saio da presidência, mas não saio da causa’
Após a solenidade de assinatura, com direito a uma dancinha desajeitada do presidente da Funai com os Guarani Kaiowá, Costa rumou para o elevador. Do 13º andar, foi direto ao térreo, acompanhado dos índios, onde servidores da Funai o aguardavam para seu último pronunciamento. “Quero dizer que não devo ficar um ano aqui na casa e, com isso, vamos deixar de concluir muitos trabalhos, muitas conversas. Eu venho do serviço público e eu sei que, principalmente nos cargos de confiança, você entra para passar um tempo. Quando eu cheguei aqui em junho de 2015, sabia que viria para passar um tempo. Mas não este tempo, que foi cortado por decisões políticas com várias consequências e desdobramentos grandes”, discursou o presidente. “Vamos resistir, porque o que vem por aí não é uma agenda fácil. Se o governo da presidenta Dilma não fez o que estava na expectativa dos povos indígenas por conta das injunções políticas… mas esse governo tem DNA, tem identidade, compromisso com os povos indígenas, quilombolas, sem-terra e sem-teto. Deixamos de fazer muito, mas fizemos. Mas o que vem aí vem da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], vem do seu Paulo Skaf, o governo que vem aí vem da avenida Paulista, vem do Congresso que impôs e votou a PEC 215 e articulou a CPI”, exclamou.
Os servidores do órgão que falaram com a Pública após o pronunciamento de Costa não quiseram ser identificados. Suas alegações vão na mesma linha dos índios mobilizados: se com o governo Dilma Rousseff seria mais viável disputar internamente o órgão em favor das pautas indígenas, com Temer, o cenário é mais complicado.
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