Não aguento mais ouvir que Deus não existe. Não aguento mais ouvir que Deus existe. Nunca ninguém chegou perto de mim, estufou o peito e disse: “O diabo não existe”. Vejam bem: o diabo está intimamente ligado tanto à negação quanto a afirmação de Deus. Como se ambos se anulassem, como fraude, e ambos se confirmassem como sentença. Se eu dissesse “tanto faz” se existem ou “tanto faz” se não existem, estaria cometendo um oxímoro duplo. A diferença é que o folgado não divide a mesma responsabilidade, nem carrega o mesmo fardo de ter criado o céu e a terra e as estrelas, os luares, as auroras … os corruptos de Brasília e as duplas sertanejas – porque, consta, todos são filhos Dele, inclusive, e principalmente, o diabo.
O simples fato de afirmar que Deus não existe não é o suficiente para desacreditar na existência do diabo. Mas, por outro lado, quando afirmamos que Deus existe, confirmamos automaticamente a presença do pé quebrado entre nós. O diabo é um caso único de onipotência, tanto na negação quanto na afirmação. Existe e não existe: nas rebarbas e no conjunto, nos desvãos e nas fachadas, na fartura e na miséria, no rés-do-chão e nas abobadas celestes, na verdade e na mentira.
A primeira vitória do diabo, segundo os exorcistas, é fazer você acreditar que Ele não existe. O descrédito é o primeiro passo para a danação eterna. Entretanto, se você está convencido de que ele existe, pode – neste momento – estar servindo aos seus interesses. Complicado, né?
Eu acredito que o diabo existe sim, e é omisso. Nem a mentira mais escrota é pior que a omissão. Aliás, nada mais diabólico e nojento que a omissão. A partir desse ponto, vou especular um pouco e chafurdar em textos apócrifos e no próprio evangelho.
Vamos lá.
Pilatos relutou muito antes de lavar as mãos. Durante algum tempo, era costume do governador romano permitir aos populares escolher algum homem prisioneiro ou condenado para receber o perdão na época da Páscoa. Jesus Cristo estava sob custódia de Pilatos. Uma multidão tinha vindo diante dele para pedir-lhe a libertação de um prisioneiro, e já que Jesus tinha estado tão recentemente nas boas graças das multidões, ocorreu a Pilatos que certamente ele poderia livrar-se do abacaxi, propondo a essa multidão libertar o homem da Galiléia, em sinal de boa vontade pascal. Enquanto a multidão lançava-se, subindo a escada do edifício, Pilatos ouvia-a chamando o nome de um tal de Barrabás.
Pôncio Pilatos era vacilão, mas não era louco. A multidão enfurecida, aquela mesma pela qual – dizem – Deus expressa sua voz, pedia a soltura de Barrabás. Pilatos tentou contornar a situação:
Publicidade– Quem deve ser libertado, o ladrão e assassino Barrabás, ou Jesus, o lunático que se diz Rei dos Judeus?
– Barrabás! Barrabás! Liberte Barrabás – gritava a multidão sanguinária.
– Se eu libertar Barrabás, o ladrão e assassino, o que farei com Jesus?
A multidão:
– Crucifica-o! Crucifica-o!
E o diabo? Sim, a pergunta que ingenuamente me faço, é a seguinte: onde estava o diabo nessa hora? Onde mais senão no meio do povo, e nas mãos sujas e covardes de Pilatos? Mas por que o demônio (aquele que ninguém nega…) não se manifestou, e incitou a multidão a algo mais radical, do tipo: “Empalem o Rei dos Judeus! Empalem o homem!”
Os leitores hão de perguntar: será que o maluco do cronista está querendo nos dizer que a crucificação foi pouco?
Não, não é nada disso. Tenho uma tese.
Segundo os manuais de tortura, o empalamento ou empalação consiste na inserção de uma estaca no ânus, vagina ou umbigo até a morte do torturado. Algumas vezes deixava-se um carvão em brasa na ponta da estaca para que, quando esta atingisse a boca do supliciado, o infeliz não morresse até algumas horas depois, de hemorragia. Usava-se também cravar a estaca no abdômen. Esse tipo de tortura, altamente cruel, foi vastamente utilizada por diversas civilizações no mundo inteiro, sobretudo na Arábia e Europa. Diz a lenda que o monarca assírio Assurbanípal apreciava assistir a sessões de empalamento enquanto fazia suas refeições. O método foi muito utilizado pelo conde romeno Vlad da Valáquia, que ganhou fama por empalar seus inimigos, e ficou conhecido pelo titulo de Vlad III, o Empalador, ou, em romeno, Vlad Ţepeş.
Vlad – dizem – também apreciava empalações à mesa, logo na primeira refeição matinal, junto a sucrilhos e geléias de framboesa. Todo mundo sabe que foi ele quem inspirou Bram Stocker a escrever seu notório livro “Drácula”.
No caso dessa crônica, o empalamento é uma licença poética, assim como o tempo e o vento e o espaço e as atrocidades que correm nas ficções e na bíblia. Portanto, o meu diabo estava no meio da multidão que uivava diante do Cristo, e ele, o diabo, podia perfeitamente – segundo minha tese – ter soprado a palavra “empalação” nos ouvidos de algum possuído, ainda que essa técnica não fosse moda entre os romanos naqueles tempos – mil e quatrocentos anos antes de o conde Vlad se distrair com a mesma prática em seus desejuns lá na Transilvânia.
A tese é a seguinte. Se o Cristo tivesse sido empalado, a Igreja e os seus subprodutos mais sórdidos simplesmente não resistiriam. Não existiria ressurreição de um empalado, nem evangelho segundo Mateus, nem apóstolos, nem bispas, nem pedofilia, nem cruzadas, nem civilização ocidental judaico-cristã, nem Capela Sistina, nem culpa (nem o tesão advindo da culpa…), nem o diabo a quatro resistiriam a tamanho deboche. Duvido!
A cruz é que leva Cristo nas costas, e não o contrário. Por que o meu diabo se omitiu? Ora, porque ele é o interessado número 1 em despistar, também o responsável pelo nosso sofrimento e por nossa empalação diuturna no vale de lágrimas que chamamos nosso lar, o diabo é a cidade escura depois do Kassab, o lixo acumulado nas calçadas. O diabo é a consequência deliberada de tudo o que veio em seguida, porque ele está presente em todos os cálices sagrados e nos profanos também, porque ele existe na negação e na fé mais contundente. O diabo existe e não existe em cada sílaba da Bíblia e em cada gota de suor, de sangue e de fezes derramados por nosostros, desde Pilatos, passando por Michelangelo Buonarotti até chegar ao Padre Marcelo Rossi.
O diabo é onipotente porque é omisso, ele é quem deu as chaves do céu a Pedro como recompensa pelo apóstolo ter negado o amigo três vezes, só mesmo Pedro poderia representar a pedra fundamental da igreja de Bento XVI, na base da omissão e do escárnio.
Em seguida, Pilatos ordenou que lhe trouxessem uma bacia e um pouco de água para que, ali mesmo, perante a multidão, lavasse as próprias mãos, dizendo: “Sou inocente do sangue deste homem. Estais decididos que ele deve morrer, mas eu não encontrei nenhuma culpa nele. E, pois, cuidai vós disso. Os soldados o levarão”.
E então a multidão aplaudiu e replicou: “Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos”. A cruz é o fetiche do diabo. Talvez seu maior disfarce. A verdadeira estaca que atravessou o rabo de Jesus e rasga as entranhas do mundo até hoje.
P.S: Na próxima semana, meu novo romance, “Charque” (editora Barcarolla), estará a venda em todas as boas casas do ramo.
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