“Torna-se claro o deslocamento do poder, com o esvaziamento do Executivo. Pode ser um disfarce, como alguns analistas observam, para um afastamento de fato de Bolsonaro. Pode ser uma tentativa de retirar o poder real do presidente, que viraria uma rainha da Inglaterra. Solução menos traumática, é claro, do que um impeachment” (Paulo José Cunha, na coluna “Quem for fazer o Enem estude o Bolsonaro porque ele vai cair”, 20 de maio/2019).
“Se isso aí se transformar em lei, todas as agências serão indicadas por parlamentares. Imagina qual o critério que vão adotar. Pô, querem me deixar como rainha da Inglaterra? Este é o caminho certo?” (Jair Bolsonaro 23/06.2019, comentando projeto aprovado pelo Congresso que delega ao Parlamento e retira do Presidente da República a prerrogativa de indicar os integrantes das agências reguladoras).
Elizabeth II de voz grossa
Demorô. O que, no caso de Bolsonaro, não é novidade alguma, dada a sua proverbial lentidão de raciocínio associada a um sesquipedal coeficiente regressivo nos reflexos derivados da inteligência. Ora, se até um escriba ordinário que nem eu já havia feito essa previsão um mês atrás, como foi possível que um presidente da república não a tenha feito? E olha que ele está cercado de assessores e consultores, e até do astrólogo-vidente Olavo de Carvalho, um ser capaz de prever o futuro, o presente e até o passado(!), além de pôr abaixo a teoria absurda de um tal de Copérnico de que a Terra gira em torno do Sol. Então, como foi possível que o presidente não se deu conta de que o estão transformando numa Elizabeth II de voz grossa?
Bajulai. Bajulai. Na dúvida, bajulai mais. Mas bajulai
A razão é simples: áulicos existem para bajular, para dizer o que o presidente GOSTA de ouvir, e não o que PRECISA ouvir. Esmeram-se em colocar frases melosas, melodiosas e gosmentas nos ouvidos do capitão. Ninguém se atreve a dizer, na lata, que se ele se levantar um pouquinho da cadeira (quase escrevia “trono”) vai perceber que existe um alarido de insatisfação e de decepção com seu governo, mesmo dos que o apoiaram. Não aparece ninguém com peito pra dizer que ele precisa assumir a presidência e parar de brincar com tomada de três pinos. Não aparece ninguém capaz de dizer a ele que, a cada ataque que faz ao Congresso, mais atrai contra si a ira do poder por onde passam TODAS as decisões. Ninguém tem raça pra dizer: compadre, toda lua-de-mel acaba. E a sua já foi.
O resultado é que Bolsonaro, que nem uma bússola desgovernada, age segundo erráticos impulsos. Como lhe falta competência – e ele próprio reconheceu – para tocar a economia, deixa que o barco navegue a partir das decisões tomadas pela equipe de Paulo Guedes e lava as mãos. Sua obsessão por aniquilar qualquer traço de um marxismo/petismo que enxerga até na roupa de cama do Palácio da Alvorada, faz com que saia demitindo e nomeando a torto e a direito – como fez com o auxiliar que teve a audácia de posar para uma foto ao lado de sindicalistas. Ou com o presidente do maior banco de fomento do país, simplesmente porque se lembrou que Joaquim Levy serviu a governos petistas e nunca abriu uma tal de caixa preta do BNDES (que o substituto nomeado, um menino que mal saiu dos cueiros, vai ter de achar ou inventar e exibir ao país, senão o presidente-rainha o põe pra correr também). Sem falar na lista de militares que vem nomeando e demitindo sem critério algum, a não ser o do compadrio e da amizade. O resultado é o aumento na taxa de áulicos dentro do governo. Uma gente escolhida entre os que fazem parte da curriola, como aconteceu agora com a nomeação do major Jorge Oliveira para a Secretaria-Geral da Presidência. Ora, se o pai do major já servia ao presidente na qualidade de chefe de gabinete dele; e se o major já havia sido chefe de gabinete de Eduardo Bolsonaro, como vai ter peito pra dizer na cara do presidente que, se ele for por tal caminho, pode quebrar a cara? Será apenas mais um a limpar a caspa do paletó presidencial.
O capitão é gente do povo. Compra o próprio xampu…
PublicidadeEnquanto o governo – se é que se pode chamar esse troço de governo – não começa, o capitão-presidente-rainha se esbalda no mais deslavado populismo posando de gente do povo. Uma hora sai do Planalto a pé pra ir abraçar o humorista Alberto da Nóbrega numa sessão do Congresso; outra, pra comprar xampu e posar pra fotos num mercadinho, como se não tivesse nenhum servidor do Palácio do Planalto com competência pra pra comprar um tubo de xampu. Tudo para parecer popular, homem “do povão”, sujeito simples que continua como antes de assumir a presidência, tá vendo, foi sozinho comprar o próprio xampu…
Curiosamente, sem querer, Bolsonaro vai abrindo caminho para alguns feitos de realce, como bem apontou Ranier Bragon, jornalista da Folha. Ou alguém duvida que o Supremo não considerou a proverbial aversão aos gays de Bolsonaro ao criminalizar liminarmente a homofobia? Ou alguém tem dúvidas de que o Senado (que provavelmente será seguido pela Câmara) derrubou o decreto das armas sob influência da opinião pública, que o capitão e sua trupe teimam em não respeitar? Lorenzoni, desapeado da articulação política, teve a infelicidade de dizer que o Senado foi contra os que elegeram Bolsonaro porque, segundo ele, votaram no capitão porque apoiam sua vocação armamentista. Quando as pesquisas indicam exatamente o contrário, com a maioria da população dizendo que não quer o país convertido num faroeste.
Sem apetite para abrir uma boa relação com o Congresso, na contramão das mais primárias noções de respeito aos direitos humanos e manifestando dia sim e outro também sua vocação autoritária e sua aversão à convivência democrática, o capitão-rainha vai rapidamente abrindo caminho rumo ao Castelo de Windsor. Betinha que se cuide.
– God save the Queen, my captain!
O cara não tem nem classe nem civilização para ser rainha da Inglaterra. O Congresso deveria começar a ignorá-lo e governar sem ele.