Marcelo Mirisola*
Tive dois sonhos na vida. O primeiro não consegui estragar transformando-o em realidade por absoluta incapacidade técnica, e psicomotora: queria ser garçom. De preferência, num hotel três estrelas, e se possível em Águas de Lindoya. Não deu.
O meu segundo sonho era ser autista. Creio que estou conseguindo (embora publicamente). Talvez eu seja um autista in progress. Às vezes, quando me aproximo desse estado privilegiado, me dá uma vontade danada de jogar minhas esquisitices no ventilador sem nenhuma obrigação e/ou consistência, apenas pelo prazer do atrevimento e da técnica que adquiri em espalhar o alheamento e a confusão, e – claro – pelo prazer quase sobrenatural de me incluir no pacote.
Eu vou junto, de gravata borboleta e equilibrando a bandeja de salgadinhos. Faço questão. Embora, admito, tenha um certo receio. Sei lá. De repente o sindicato dos autistas me exclui dos seus quadros, ou me processa; ou pior, para me punir seriam capazes de me obrigar a trocar receitas com monsieur Olivier Anquier. Taí um pesadelo. Aposto que eu ficaria encabulado diante de le grand maître des autistes.
Sempre me perguntam: “pra que time você torce?” Torço sinceramente para o futebol acabar… e também sou a favor do Pebolim. Sabem por quê? Porque depois da partida os jogadores não dão entrevista. Deixemos o Baixinho fora disso.
Mas, como eu ia dizendo, ao me aproximar do autismo, comungo dos sentimentos mais torpes e sublimes — às vezes é divertido, às vezes entediante —, quero o horror pelo horror e vou do nada a lugar nenhum feito um santo exaurido pela própria beatitude ou feito um terrorista que manda uma sinagoga cheia de críticos literários pelos ares, desejo o apocalipse e o pôr-do-sol… em seguida, misturo a culpa com uma tesão encruada e cometo crimes inafiançáveis contra meu próprio gênio, cujo nome é Marisete.
Aí bate uma ressaca braba e eu imploro o amor de Deus e jamais peço desconto pras putinhas. Isso eu aprendi com meu avô: jamais pechinche com mulher da vida. Ok. Enquanto isso, o mundo vai se acabando “lá fora”. A propósito. O diabo – ele que me assopra nesse instante – tem franquias e concorrentes nos quatro cantos do mundo. Mas não dá bandeira, claro que não. Bush não serve nem para disfarce. O diabo não está
Assim, o diabo comete a espera. Que é o maior e mais grave dos crimes. O mais bonito também. Se bem aproveitado, pode virar uma suíte de Dorival Caymmi. Um paradoxo. A felicidade de antemão, o suicídio como um capricho desaforado. Ou, em último caso, a originalidade.
O diabo atua onde ninguém imagina, e não é na Igreja do bispo Edir Macedo. Nem debaixo do saiote do Papa. Tampouco no Obelisco do Paulo Casé, na divisa entre Ipanema e Leblon. O lugar do diabo – insisto – é na espera, onde nada acontece. Esperar é o maior dos crimes, e a omissão é a primeira lei do capeta. Isto é, ele não precisa fazer absolutamente nada, apenas aguarda que as coisas aconteçam à sua revelia. Todavia nada acontece à revelia do mal. E eu vos asseguro, queridos leitores, o mundo gira enquanto ele, o diabo, aprecia a paisagem e preguiçosamente coça o saco, enfim, enquanto ele espera.
Foi assim que perdi a alma numa praça de pedágio da via Dutra. O danado estava lá no guichê 5, e eu nem notei que minha alma havia sido subtraída ao receber o troco. Na hora, reclamei do valor do pedágio; ainda lembro que o maligno esboçou um sorriso tímido, e disse: “estou cumprindo minha função”. Segui viagem achando que ia para o Rio de Janeiro, quando, na verdade, estava a caminho do inferno.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.
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