Ricardo Westin/Agência Senado
O senador João Villas Boas (UDN-MT) estava inconformado. Quando faltavam apenas duas semanas para a transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília, marcada para 21 de abril de 1960, ele subiu à tribuna do Palácio Monroe, a sede do Senado, no Rio, para argumentar que o presidente Juscelino Kubitschek cometia um erro grave ao inaugurar uma cidade ainda em obras:
“O senhor presidente está distribuindo convites até a Sua Santidade o papa e à rainha da Inglaterra para virem assistir a quê? A andaimes, apartamentos em construção e ruas poeirentas, que só atravessá-las nos deixa a roupa marrom. Isso na época da seca. Quando chove, é preciso tirar os sapatos e suspender a calça até o joelho para atravessar o lamaçal. A cidade também não tem luz nem esgoto. É grande o ridículo da parte de nosso governo.”
Leia também
Nesta terça-feira, dia 21, a mudança da capital completa 55 anos. Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado mostram que, às vésperas da transferência, o clima no Plenário era de excitação. De um lado, a oposição (encabeçada pela UDN) insistentemente ocupava a tribuna para apontar cada falha de Brasília e exigir o adiamento da inauguração até que os políticos e os funcionários públicos encontrassem na cidade condições satisfatórias de habitação. Do outro lado, a base governista (liderada pela aliança PSD-PTB) se derramava em elogios a JK pela façanha de erguer uma cidade do nada, no vazio do Planalto Central, em apenas quatro anos.
No mesmo pronunciamento, Villas Boas afirmou que a falta de hotéis em Brasília forçaria muitos dos participantes dos festejos inaugurais a se hospedarem em Goiânia e até mesmo em Araxá (MG). O senador oposicionista Mem de Sá (PL-RS) apoiou o colega. Ele, que semanas antes havia inspecionado a nova capital, disse que nem o luxuoso Brasília Palace Hotel, aberto em 1958, era digno de receber os convidados estrangeiros de JK:“Quando lá estive, o hotel mostrava em inúmeros pontos as marcas da imprudência administrativa pela ânsia da construção em tempo recorde. Já eram inúmeros os lugares nos forros e nos tetos em que as infiltrações e a umidade faziam com que começassem a cair os revestimentos, que, de resto, são precários, de segunda e de terceira qualidade.”
JK vinha inaugurando com pompa e circunstância cada edifício que ficava pronto. O objetivo era convencer o Brasil de que a transferência se daria, sim, em 21 de abril, conforme mandava o cronograma original.
“Em 21 de abril, pedir-se-á emprestado um cadáver a Goiânia para a inauguração do cemitério de Brasília”, alfinetou Mem de Sá, arrancando gargalhadas dos senadores.
Lobão da Silveira (PSD-PA) correu para defender o governo. Ele disse ter certeza de que Brasília estaria completamente em ordem dentro de poucos dias:
“Em Brasília, trabalham-se 24 horas por dia e multiplicam-se os dias por três.”
Daniel Krieger (UDN-RS) rebateu: “E também se gasta por três”.
Outro argumento dos opositores era que o governo passaria um bom tempo livre do controle popular, já que a nova capital ainda não oferecia a infraestrutura básica de telecomunicações às emissoras de rádio e TV.
Apartamento em obras
A mudança da capital do Rio para o centro do país já estava decidida desde o início da República. Atendendo uma determinação da Constituição de 1891, o presidente Floriano Peixoto criou no ano seguinte uma comissão que explorou o Planalto Central e apontou a área do estado de Goiás que deveria abrigar a nova sede do governo.
Aliado de JK, o senador Lima Teixeira (PTB-BA) apresentou o principal argumento dos chamados mudancistas:
“Com a transferência da capital, levaremos um pouco do progresso do litoral para o interior do Brasil. Não é possível que continue o Brasil com duas zonas distintas: uma subdesenvolvida e outra próspera. Quando se concretizar a transferência da capital para o coração do Brasil, aqueles que aqui se utilizaram da tribuna para combatê-la hão de arrepender-se, diante das possibilidades econômicas que impulsionarão o país.”
Mesmo fazendo parte da base governista, o senador Caiado de Castro (PTB-DF) não escondia sua irritação com o ritmo das obras. Ele pediu a palavra para reclamar que seu apartamento funcional em Brasília ainda não estava pronto:
“Não sou homem de comodidades. Nasci no Distrito Federal [a atual cidade do Rio], mas vivi no sertão. Como soldado, já dormi até em barraca. Mas, como senador da República, posso morar numa barraca em Brasília? Se receber as chaves do apartamento, irei para a nova capital. Se não, permanecerei aqui, na Cidade Maravilhosa, aguardando que termine a construção do edifício que terei que habitar.
Com a transferência, a cidade do Rio deixaria de ser o Distrito Federal e se transformaria no estado da Guanabara. Caiado, que era carioca, disse que seus conterrâneos estavam felizes com a mudança, pois deixariam de ter um prefeito nomeado pelo presidente da República:
“De agora em diante, seremos donos do nosso nariz. Poderemos dirigir o estado com aqueles que tiverem a ventura de merecer a confiança do povo [pelo voto]. Hoje, como se sabe, quem manda é o governo federal.”
O Congresso Nacional teve papel decisivo na criação de Brasília. Foram os senadores e deputados que aprovaram as leis propostas por JK, incluindo as que liberaram os recursos financeiros necessários para as obras. Explica o historiador e consultor legislativo do Senado Marcos Magalhães, autor de um estudo sobre a mudança da capital na perspectiva do Congresso:
“A oposição não se empenhou em derrubar os projetos relativos a Brasília porque acreditava que a nova capital era uma utopia e representaria o suicídio político de JK. Os projetos acabaram sendo aprovados com facilidade. No final, quando a nova capital já era irreversível, a oposição se mobilizou para criar CPI e adiar a inauguração. No entanto, nada disso adiantou.”
Novacap e Velhacap
Assim, com repiques de sinos, missas, coquetéis, jantares e bailes, JK cumpriu sua promessa e inaugurou Brasília no feriado de Tiradentes. A derradeira sessão do Palácio Monroe ocorreu na tarde de 14 de abril, uma semana antes dos festejos. Cheios de nostalgia, os senadores se despediram do Rio.
“Estas cadeiras que ocupamos vagas ficarão para todo o sempre”, discursou Argemiro de Figueiredo (PTB-PB). “Não sairemos daqui com a fleuma intangível dos ingleses. Sairemos como latinos, arrebatados de emoções. Os nossos discursos, os debates calorosos, os pequenos incidentes, o rumor dos nossos passos, subindo e descendo os degraus deste recinto, este teto sóbrio e nobre, estas colunas romanas, a agitação dos taquígrafos, a curiosidade indiscreta dos jornalistas, o ruído dos tímpanos, tudo que lembramos transmuda-se em saudades tão intensas que nos levam a dizer que esta Casa, ao cerrar as suas portas, guardará também alguma coisa de nossa própria vida”, acrescentou.
O senador Jorge Maynard (PSP-SE) também se emocionou: “Não podemos esconder nem dissimular as saudades com que todos deixamos a terra carioca. Mas o interesse maior do Brasil exige que a deixemos e o fazemos certos de que estamos praticando um ato de sadio patriotismo. O Rio de Janeiro ficará para sempre nos nossos corações e dele levaremos as mais gratas recordações. O Brasil nunca esquecerá que aqui pulsou durante séculos a alma da nação brasileira.”
Guido Mondin (PRP-RS) citou os apelidos que Brasília e o Rio ganharam naquela época — Novacap (nova capital) e Velhacap (velha capital): “Não me conformo quando se referem ao Rio de Janeiro chamando-o de Velhacap. Não! Ninguém lhe tirará mais a situação que o tempo lhe deu, transformando esta ainda capital de nossa pátria numa das mais belas cidades do mundo, a nossa Belacap. Brasília há de ser agora o cérebro desta nação, mas o Rio de Janeiro será sempre o coração da pátria.”
No meio de todo aquele frenesi, o senador Affonso Arinos (UDN-DF) advertiu que ninguém havia se preocupado com o busto de Ruy Barbosa que adornava o Plenário. A efígie do célebre jurista, que foi senador de 1890 a 1921, quase ficou para trás na mudança para Brasília. O senador Cunha Mello (PTB-AM), que presidia a sessão, avisou que a Mesa do Senado acolhia a sugestão e decidia que a imagem seria levada para a nova capital — é a mesma que hoje se encontra no Plenário do Senado.
A primeira sessão do Senado no edifício assinado por Oscar Niemeyer se realizou um dia após a inauguração da capital, em 22 de abril. Villas Boas, Mem de Sá, Krieger e Caiado, os senadores mais críticos da mudança, faltaram. Dos parlamentares presentes, o que se ouviu foram discursos ufanistas e de louvor a JK.
“Devemos a inauguração da nova capital do Brasil à vontade, à energia, à determinação e à audácia de Juscelino Kubitschek, que realizou o sonho dos nossos antepassados”, afirmou Victorino Freire (PSD-MA).
Alô Guimarães (PSD-PR) descreveu Brasília como “uma revolução arquitetônica, urbanística, política, social e econômica” que conduziria o país a sua “destinação gloriosa”. De acordo com Saulo Ramos (PTB-SC), a nova cidade se transformava na “sede do coração e do pulso da nacionalidade”. Novaes Filho (PL-PE) disse: “A caminhada daqui por diante será bem mais fácil porque bem mais fácil será a distribuição dos favores, da assistência, da proteção e do amparo governamentais a todas as populações do Brasil. Nosso país certamente há de irradiar-se de Brasília, com alto sentido de justiça, sem preterições e sem preferências”.
Recesso
A oposição não teve como ignorar o êxito da transferência da capital. Nos pronunciamentos da sessão inaugural, porém, os senadores da UDN buscaram tirar o protagonismo de JK e destacaram apenas os trabalhadores que tornaram a nova capital realidade. Heribaldo Vieira (UDN-SE) discursou: “A União Democrática Nacional bate palmas ao povo, que nas suas carnes lancinantemente sofreu a fome e a miséria para que se pudesse construir Brasília no ritmo acelerado que hoje culmina com esta inauguração magnífica a que assistimos todos nós, representantes do povo e candangos que para aqui vieram edificar Brasília.”
Conterrâneo e aliado de JK, Lima Guimarães (PTB-MG) fez um pronunciamento em tom de desforra: “Aí está Brasília, desconcertando aqueles que nela não acreditavam, os incrédulos e os adversários, verdadeiros inimigos da pátria, porque não sabiam compreender que a interiorização da capital significava um passo gigantesco para o desenvolvimento econômico do país.
Attilio Vivacqua (PR-ES) pediu ao “espírito patriótico” dos senadores que perdoasse “as falhas e imperfeições inevitáveis nesta obra gigantesca”. De fato, a cidade estava inacabada. O prédio do Congresso também. Além disso, boa parte da papelada e dos funcionários do Senado não havia chegado a Brasília.
Por essa razão, 40 senadores apresentaram um requerimento para que a Casa entrasse em recesso. Freitas Cavalcanti (UDN-AL) advertiu que seria perigoso “impor-se silêncio a uma das Casas do Poder Legislativo”. A oposição, mais uma vez, foi ignorada. A primeira sessão em Brasília se encerrava e o Senado entrava em recesso. Os senadores só voltariam a se encontrar três semanas depois.
Deixe um comentário