Wellington Almeida*
No contexto dramático da pandemia da covid-19, que apresenta a morte como ameaça real, perpassando as preocupações de todos os estratos sociais – a despeito de suas consequências práticas diferenciadas, causadas pela pobreza e pela desigualdade –, o país assiste, atônito, ao acirramento de uma crise política com alta possibilidade de impasse institucional. Três cenários estão colocados: queda do presidente (via impeachment ou renúncia), golpe de Estado ou acomodação política com ameaças autoritárias e recuos táticos até as eleições de 2022.
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O presidente da República incentiva atos de sua base de apoio que propaga, cotidianamente, mensagens e ações de desobediência civil em favor de um golpe de Estado. Testam o roteiro de um autogolpe bonapartista, que visa essencialmente conceder poderes extraordinários ao chefe do Executivo, permitindo que ele governe sem contestação social e o contraponto dos outros poderes constitucionais. Trata-se de um delírio, a princípio inimaginável nesta altura do século 21 em um país de dimensão continental e com uma sociedade razoavelmente complexa.
Parcialmente imobilizadas pelas restrições da crise sanitária, as lideranças políticas e sociais batem cabeças para encontrar um antídoto capaz de frear esse intento de ruptura com a democracia. Essas ações transitam dos ensaios em favor do impeachment, sugestões de renúncia e buscas desesperadas por um sinal mais forte de compromisso das Forças Armadas com a manutenção da ordem democrática. A necessidade desse sinal revela uma anomalia e um temor inútil. Se necessitamos desta tutela é porque não temos democracia. E a única maneira de saber se ainda a temos é acionando os mecanismos democráticos disponíveis.
A maioria dos analistas e as lideranças políticas não acreditam em um desfecho golpista e ainda estão céticos em relação a uma interrupção do mandato presidencial. De fato, parece inverossímil vislumbrar a concretização de um autogolpe tanto pela comparação histórica em relação ao Brasil quanto pela dinâmica da experiência de democracia nos países capitalistas ao longo do século 20. No primeiro caso, o golpe de 1964, civil e militar, contou com fortes elementos hoje inexistentes. Além do fator guerra fria, houve apoio majoritário de empresários, da igreja, da mídia e da classe média. No segundo, uma influente literatura de ciência política, estruturada a partir de bons estudos comparativos, sustenta, que em sociedades com determinado padrão de renda, portanto, com elementos de complexidade, não haveria condições para golpes ou revoluções. Essa visão analítica favorece, então, o diagnóstico de acomodação com aumento controlável das tensões.
À análise acadêmica acima citada, cujo expoente principal é o cientista político Adam Przeworski, agregou-se recentemente ao debate a visão desenvolvida por Steven Levitsky sobre como as democracias morrem. Não são posições idênticas, mas ambas favorecem o conceito em expansão de “deslizamento autoritário”, isto é, na impossibilidade de um golpe no sentido clássico. Haveria uma progressiva erosão da democracia sem ruptura abrupta, que paulatinamente nos levaria a um regime híbrido ou não democrático, como ocorre hoje em países como Turquia, Polônia e Hungria. Nosso risco democrático, pois, seria somente este e estaria colocada a tarefa de resistir a esse processo de erosão. Trata-se de um conjunto de crenças, revelador de otimismo quanto aos desdobramentos da crise, ainda que bem fundamentado em termos analíticos. Mas como todo paradigma explicativo, tem caráter histórico e provisório e estará sempre em teste. E o teste que se aproxima é de grande monta.
O ensaio golpista, certamente, tem adesão minoritária, mas quem o conduz ainda dispõe de muitos instrumentos de poder e os usa sem vacilo. Tem o apoio difícil de ser dimensionado em amplos segmentos das áreas de segurança pública, apoio fanático de grupos religiosos fundamentalistas, direciona recursos para setores tradicionais da mídia eletrônica e das novas mídias sociais e aposta no colapso e no caos para fortalecer a demanda de outros segmentos sociais por uma saída autoritária. Além disso, até o momento observamos a ambiguidade do setor militar, no qual muitos buscam sinal de proteção. Melhor abrir o olho.
* Doutor em Ciência Política pela USP, é professor da Universidade de Brasília (UnB) e foi professor visitante na Escola de Estudos Orientais e Africanos (Soas) da Universidade de Londres (2019-2020).
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