*Lucia de Fatima Nascimento de Queiroz
O noticiário nacional do começo desta semana destaca a existência de um estoque de 6,8 milhões de testes para diagnóstico de covid-19, sob a gestão do Ministério da Saúde, que estaria na iminência de perder a validade nos próximos dois meses. Também pela imprensa, o Ministério da Saúde admitiu o encalhe dos testes, com o governo federal atribuindo o represamento desses exames à inação de estados e municípios.
O que isso reflete em termos de política pública? A veiculação dos relatos sobre a expiração da validade dos testes revela questionamentos preocupantes sob a condução da política de prevenção e de controle da covid-19 no país.
Os exames diagnósticos que estão prestes a vencer são do tipo RT-PCR, considerados a modalidade de teste padrão-ouro para o diagnóstico de covid-19, mediante a identificação do vírus ou de seus fragmentos nas secreções nasais ou orofaríngeas.
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O ritmo de testagem da covid-19 no Brasil não vem atingindo as recomendações emanadas dos grandes centros de pesquisa do mundo sobre a doença e da Organização Mundial da Saúde, encontrando-se abaixo da meta estipulada pelo Ministério da Saúde, de 42,6 milhões de testes aplicados até o final do ano. De acordo com o que tem sido veiculado, até o presente, apenas 20% da meta foi atingida, tendo sido processados cinco milhões de exames, de um total de 9,3 milhões de kits diagnósticos que foram distribuídos nos laboratórios públicos do país. Esses números apresentam tendência de decréscimo desde o mês de setembro e os indicadores chamam a atenção, quando sabemos que os países que mais realizaram testes são exatamente os que melhor têm enfrentado a pandemia.
O noticiário destaca, ainda, aspectos relativos ao elevado custo unitário dos testes tipo RT-PCR para os cofres públicos e às providências que estariam sendo adotadas pelos órgãos governamentais para evitar os prejuízos, que consistiriam na análise dos estoques e uma possível extensão da validade dos testes. Associadas à ausência de esforços governamentais para uma melhor comunicação e esclarecimento do fato, essas informações evocam suspeições sobre a confiabilidade dos exames, sobretudo por parte do cidadão comum.
Além das providências para a resolução do episódio, há reflexões sobre as suas causas. Uma delas se vincula às dificuldades para a explicação do problema junto à população atual e às futuras gerações, dado que, nas democracias, os dirigentes devem explicações sobre seus atos e responsabilidades aos cidadãos. Assim, como justificar que, no decorrer de uma das crises sanitárias e econômicas mais graves do século, estoques volumosos de insumos dispendiosos e de relevância para o controle da doença tenham sido negligenciados pela administração pública do país, a ponto de ser necessária uma atuação emergencial para tentar resolver a situação?
A explicação do problema se apresenta ainda mais delicada pela razão de que a distribuição tempestiva desses testes, e o consequente uso pela população que por eles pagou, demandaria não mais do que atividades tradicionais de planejamento, logística e de coordenação governamental. Nesse aspecto, o episódio é ilustrativo de que a mera disponibilização de recursos financeiros em sistemas que possuem a complexidade e a dimensão do SUS é apenas parte das soluções que o governo deve apresentar à sociedade, haja vista que a implantação de políticas públicas efetivas envolve, tanto o aporte de recursos financeiros adequados, o domínio de habilidades técnico-políticas relacionadas à gestão profissional do aparato público, sobretudo àquelas que se relacionam ao âmbito do planejamento e da logística e, no caso específico do SUS, da interlocução e da coordenação federativa.
Por fim, o encalhe dos testes acende um alerta sobre as campanhas vacinais que estão previstas para a imunização contra a covid-19. Vacinas são insumos delicados, com demandas logísticas que costumam ser mais complexas do que as requeridas para os testes diagnósticos. Erros de planejamento, armazenagem e manuseio podem torná-las ineficazes e comprometer os resultados tão esperados pela população para o controle da pandemia. A ineficiência na gestão dos testes pode ser mau prenúncio frente ao desafio da vacinação em massa que está por vir.
*Lucia de Fatima Nascimento de Queiroz pertence à carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, é médica sanitarista e doutora em Administração Pública.
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