Por Antônio Augusto de Queiroz *
Na perspectiva pluralista, a democracia representativa foi a solução encontrada para permitir a igualdade entre os cidadãos, o elemento essencial para garantir o funcionamento da própria democracia, dada a impossibilidade de que todos os cidadãos participem, ao mesmo tempo, de todas as decisões, em sistemas sociais de grande escala, e a forma para assegurar a agregação de interesses conflitantes.
>Cassação de Eduardo Bolsonaro: relator é escolhido e critica fala do AI-5
Mas a democracia representativa, limitada aos direitos civis e políticos, que franqueia ao cidadão apenas a liberdade formal quanto ao acesso e ao exercício do poder – sem maiores preocupações com igualdade material ou equidade social ou econômica – pode estar com os dias contados.
Leia também
Esse modelo restritivo de democracia, que não protege os vulneráveis da exclusão e permite a concentração de renda e de riqueza sem limites, vem sendo questionado por parcela do eleitorado no mundo. Para contornar ou evitar esse mal-estar social, sobretudo decorrente da implementação da agenda neoliberal, seus adeptos têm se utilizado de alguns artifícios para iludir os eleitores incautos, desviando a atenção deles para declarações ou ideias polêmicas, em geral sem conexão com a realidade, ou mesmo criando inimigos imaginários, reforçando a dissonância cognitiva quanto ao próprio valor da democracia.
PublicidadeMas isso também vem se exaurindo. Mesmo a fórmula eleitoral de apresentar diagnósticos que coincidam com o do eleitor – como aumento da violência, da criminalidade, do desemprego, da desagregação das famílias, da corrupção e da má qualidade dos serviços públicos – e depois apontar supostos culpados por esses problemas, em lugar de apresentar propostas para enfrentá-los e resolvê-los, não se sustenta por muito tempo.
Trata-se da narrativa da pós-verdade, que – em nome do equilíbrio fiscal, do combate à corrupção e de impedir a “volta do comunismo ao poder” – aponta supostos culpados por problemas reais que afligem o povo, induzindo julgamentos morais sobre adversários escolhidos, como forma de evitar o debate sobre o conteúdo e as consequências das políticas excludentes que pratica. É a forma de impedir que os eleitores incautos percebam que seu suposto líder, na verdade, é o seu próprio algoz.
Esse método de disputar e exercer o poder já foi, com êxito, testado no plebiscito sobre o “Brexit”, no Reino Unido, e nas eleições de Donald Trump e de Jair Bolsonaro.
No Brasil, Bolsonaro aplica a cartilha à risca: escolhe adversários e os associa a práticas que agridem os interesses, os valores, a crença e a moral das famílias, como forma de despertar em seus aliados reações, sentimentos e comportamentos de rejeição e até de ódio a todos aqueles que pensam ou defendem ideias diferentes das patrocinadas por ele.
O padrão é sempre o mesmo. Elege-se inimigos e enquanto o povo dedica tempo e energia na busca por punição a esses supostos inimigos, que seriam os responsáveis pelos problemas que o afligem, ou desperdiça energia com polêmicas estéreis em redes sociais, os governantes colocam em prática políticas liberais e fiscais, sob orientação dos rentistas (mercado financeiro), que reduzem a presença dos mais pobres no orçamento e a participação dos trabalhadores na renda nacional, e aprovam leis que desregulam ou eliminam direitos sociais, enquanto ampliam os meios de controle do Estado ou de grandes grupos econômicos e midiáticos, como o Facebook, sobre o cidadão.
A reação a esses modelos e manobras, seja por consciência ou necessidade, já começa a dar alguns sinais relevantes, especialmente quando a imprensa independente mostra que os escolhidos como inimigos ou alvos dos julgamentos morais são pessoas ou instituições perseguidas por defenderem o interesse coletivo, a solidariedade, a justiça e o humanismo. Como regra, são preservados e apresentados como reserva moral apenas aqueles que comungam, de forma acrítica, da defesa do individualismo, da maximização do lucro e de valores conservadores e retrógrados. Os demais são tachados como “esquerdistas”, “comunistas”, aliados da corrupção ou defensores de “ideologia de gênero” e outros chavões que, se examinados, revelam total ausência de critério ou conteúdo histórico e fático.
As manifestações ocorridas no Chile e na Bolívia, entre outros países, são demonstrações de que as pessoas não estão mais dispostas a aceitar, passivamente, como justas e legítimas políticas que as excluem dos benefícios do progresso, tendo como consequência a concentração da riqueza nas mãos de poucos, ampliando a desigualdade e a miséria.
Com educação e formação política logo ficará evidente para o conjunto da população que governos e parlamentares de extrema direita, eleitos sob a narrativa da pós-verdade, com um discurso messiânico, de defesa da família e de combate à corrupção, na verdade não passam de enganadores, de inocentes úteis ou de massa de manobra dos donos do capital, dos acionistas, dos investidores, dos proprietários de patentes, dos donos de robôs, de rentistas ou detentores de títulos da dívida pública, com pouco ou nenhum compromisso real com os interesses dos mais vulneráveis.
No caso brasileiro, os desafios ainda são enormes para superar essa realidade de divisão do País. É preciso desinterditar o debate, investir em formação política e cívica, e promover unidade de ação entre os democratas, de um lado, com denúncias contra o caráter autoritário de muitas medidas governamentais, e, de outro, com apresentação de propostas, programas, ideias e diretrizes que sinalizem para a passagem da democracia representativa para uma democracia substantiva, aquela que, além dos direitos civis e políticos e de uma participação ampliada no processo decisório, também garanta o acesso aos direitos materiais – sociais, econômicos, culturais, etc.
Com a consciência desse momento, marcado por manobras diabólicas, e com formação política e cívica, será possível evitar mais retrocessos e promover avanços, mediante a distribuição dos benefícios do progresso. O mundo está às vésperas da 4ª revolução tecnológica, que tanto poderá reduzir a participação humana no trabalho repetitivo, insalubre e perigoso, garantindo proteção e qualidade de vida a todos, quanto pode gerar a destruição em massa de postos de trabalho e contribuir para a ampliar ainda mais a concentração de renda, da riqueza e, em consequência, o aumento da desigualdade e da miséria. A direção desse movimento dependerá do nível de consciência, de engajamento e de pressão sobre os governos, inclusive em escala mundial, para evitar o avanço da barbárie. Para reflexão nessa passagem de 2019 para 2020.
* Jornalista, consultor e analista político, diretor licenciado de Documentação do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.
>É tri! Somos o site político mais acessado pelos congressistas
Deixe um comentário