*Antônio Augusto de Queiroz
No pós-pandemia, o governo e o Congresso terão pela frente um grande dilema para resolver o problema fiscal: ou fazer uma reforma tributária, e com aumento de tributos, ou rever o teto de gasto. Sem uma dessas duas alternativas, a ingovernabilidade será inevitável. E a ideia de fatiamento também não prospera, porque se trata de tema sistêmico e cheio de condicionalidades.
Historicamente só existem três formas de atacar o problema fiscal: a) cortar despesas, complementado pela melhoria da qualidade do gasto público; b) aumentar receitas, ou c) ampliar o endividamento. E as margens são baixas para as três hipóteses, embora a segunda seja a mais factível.
A primeira forma está praticamente exaurida, considerando que o governo já enxugou ou cortou praticamente tudo que poderia, inclusive em áreas essenciais. Desde 2015, tem havido forte redução no ingresso de novos servidores por concurso, e setores vitais passam por um processo de esvaziamento e até de desmonte, com carência de insumos e de pessoal, fatos que prejudicam a qualidade dos serviços prestados. Dentre esses setores estariam: a) as áreas de fiscalização, como de segurança e medicina do trabalho, de sanidade vegetal e animal, e de meio ambiente; b) os segmentos de arrecadação e regulação, como a receita federal e das agências reguladoras, e c) os serviços pesquisas e de concessões de benefícios, como o IBGE e a Previdência e Assistência Social.
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A segunda forma, via aumento de tributos, parece inevitável: a) pela perda de receita decorrente da pandemia e do isolamento social, que foi determinante para o desaquecimento ou a quase paralisia da economia; b) pela necessidade de equilibrar as contas públicas e pagar as dívidas contraídas durante a pandemia; c) pela urgência de continuidade, ainda em que menor valor, da ajuda humanitária criada durante a pandemia, sem a qual milhões de brasileiros serão entregues à própria sorte; e d) pela necessidade de buscar uma fonte de custeio para a previdência social em substituição à folha de salário, que não arrecada mais o suficiente para honrar os compromissos com aposentados e pensionistas.
Mesmo que o governo faça um corte criterioso de benefícios fiscais, renúncias e isenções, e adote ações planejadas e enérgicas contra sonegadores e pela cobrança da dívida ativa, considerando as necessidades de caixa dificilmente arrecadará o suficiente para manter as despesas anteriores à pandemia, conforme apontado a seguir.
De fato, os novos arranjos produtivos, combinados com a criatividade dos contribuintes para fugir da tributação, tem sido deletério sobre as receitas governamentais, quase sempre mediante: 1) o planejamento tributário, a elisão ou a simples sonegação; 2) o uso de plataformas digitais, que substitui o emprego pelo trabalho e torna informal a relação de trabalho; 3) a utilização das novas modalidades de contratação, como o trabalho intermitente, a terceirização, a pejotização ou mesmo a precarização e a informalidade; e 4) a venda de bens e serviços da indústria cultural e do entretenimento, operada por gigantes da tecnologia, com baixa ou nenhuma tributação.
A terceira forma também parece próxima do esgotamento, considerando o aumento da relação dívida/PIB, que se aproxima dos 100%. Além disto, a nova narrativa de que não se pode contrair dívidas para manter ou ampliar benefícios das atuais gerações se essa dívida tiver que ser paga por futuras gerações, reforça esse diagnóstico.
Frente à baixa ou quase inexistente margem para redução de gastos e diante das dificuldades de ampliar o endividamento, que foi bastante aumentado durante a pandemia, resta a alternativa de redesenhar o sistema tributário, com o propósito de substituir tributos ineficazes ou com pouca capacidade de arrecadação por outros com maior potencial de arrecadação e sem as externalidades negativas de alguns dos atuais, como os que incidem sobre a folha de salário.
A ideia governamental de promover a reforma tributária de modo fatiada, parece pouco viável, tanto em razão da sistematicidade e complexidade do tema, quanto em função das disputadas intergovernamentais e da desconfiança dos agentes econômicos e sociais em relação ao cumprimento de compromissos assumidos pelo governo e de sua equipe econômica.
A proposta de fatiamento está sendo desenhada em três etapas, sendo as duas primeiras em nível infraconstitucional e a última em nível constitucional. A primeira consistiria na unificação do PIS/PASEP com a Cofins, a partir da criação da Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS. A segunda trataria: 1) da redução da alíquota do IRPJ, 2) da tributação de lucros e dividendos; 3) da desoneração total ou da redução de tributos sobre a folha de salários; 4) da criação de tributo sobre transações em substituição à tributação sobre a folha; 5) do fim do juros sobre capital próprio. E terceira seria a criação do IVA dual, em nível constitucional, com a fusão de praticamente todos os tributos sobre bens e serviços no plano federal e do ICMS e do ISS nos planos estadual/distrital e municipal.
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O tema tributário, por ser sistêmico, complexo e polêmico, apresenta muitos gargalos e obstáculos para sua aprovação, a começar pelas três ordens de disputa que envolve: a) uma entre os entes estatais e os contribuintes, um querendo aumentar sua carga e o outro querendo pagar menos tributos; b) uma entre os três níveis de governo, cada um querendo aumentar sua participação no bolo tributário; e c) uma entre regiões, umas requerendo preservar renúncias fiscais e outras querendo eliminar tais incentivos.
Por força das disputas mencionadas, ninguém está disposto, na hipótese de reforma fatiada, a aceitar um aumento de carga tributário no presente ou nesta primeira fase em troca de um compromisso de alívio ou redução na fase seguinte. Ou se faz a reforma de modo sistêmico, com as amarras necessárias, ainda que a implementação se dê por etapas, ou não andará no Parlamento.
Assim, ou governo faz essa opção de rever o sistema tributário, e com aumento de tributos, por força da perda de capacidade de arrecadação do atual sistema, ou terá que rever o teto de gasto e desistir do cumprimento da regra de ouro – regra segundo a qual o endividamento só pode aumentar na mesma proporção do gasto com investimento, de maneira que as futuras gerações não sejam penalizadas com despesas correntes contraídas pelas atuais gerações.
Esta seria uma excelente oportunidade para promover justiça tributária, mediante a substituição da tributação sobre o consumo e o salário, que sobretaxa os mais pobres, para os ganhos de capital, os lucros e dividendos, as grandes fortunas e grandes heranças, além de instituir a cobrança de IPVA sobre lancha e helicópteros, por exemplo. Com isto, em lugar de penalizar os menos aquinhoados, se estaria adotando a progressividade e fazendo justiça, tributando de acordo com a capacidade contributiva de cada um. Mas, infelizmente, a julgar pelo conteúdo das propostas, se não houver uma grande pressão e mobilização da sociedade organizada, os tributos vão continuar regressivos e incidindo principalmente sobre o consumo.
Quanto aos interlocutores institucionais sobre o tema, além dos integrantes da equipe econômica, especialmente o ministro da Economia, o Secretário da Receita Federal e o Procurador-Geral da Fazenda Nacional, terão papel destacado na formulação, articulação e negociação do conteúdo da reforma: os senadores Davi Alcolumbre (DEM-AP), como autor da PEC 110/2019, e Roberto Rocha (PSDB-MA), como presidente da Comissão Mista do Congresso, e, principalmente, os deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ), patrono da inclusão da matéria em pauta, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator da Reforma Tributária, Baleia Rossi (MDB-SP), autor da PEC 45/2019, e Arthur Lira (PP-AL), líder do Centrão. Estes dois últimos foram designados pelo presidente da Câmara como uma espécie de coordenadores e articuladores da matéria no âmbito da Câmara dos Deputados.
Para compreender melhor a complexidade do tema e os interesses envolvidos, bem como o conteúdo das principais propostas em tramitação, recomendo o texto “Reforma tributária volta à agenda política do Congresso” e a cartilha “Reforma Tributária com Justiça e Cidadania Fiscal”, de minha autoria, que podem ser facilmente localizados via mecanismos de pesquisa como o Google, o Yahoo ou o Bing.
*Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestrando em Política Pública e Governo pela FGV-DF, diretor de Documentação licenciado do Diap, sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.
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