Por Márlon Reis e Letícia C. S. Biondi*
A pandemia do coronavírus trouxe à discussão a possibilidade do adiamento das eleições previstas para este ano.
Em períodos antecedentes na história das eleições em nosso país, testemunhamos tanto uma manobra política para adiar a realização de eleições, como também um problema de ordem sanitária que culminou com o adiamento da posse de um presidente da República.
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Em setembro de 1918, deu-se início no Brasil à propagação de uma epidemia que, estima-se, tenha matado 50 milhões de pessoas no mundo inteiro: era a gripe espanhola.
A Câmara e o Senado permaneceram fechados por vários dias e o presidente Rodrigues Alves – que havia sido eleito em 1º de março de 1918 – contraiu a doença. Por conta disso a sua posse, inicialmente marcada para 15 de novembro daquele ano, teve que ser adiada. O presidente jamais assumiria o cargo, vindo a falecer em janeiro de 1919. O país teve que se submeter a nova eleição presidencial.
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Durante o período ditatorial iniciado em 1964, o interesse político do partido dominante fez com se desse o adiamento das eleições municipais marcadas para 1980. Interessada em dividir a oposição, a Arena, que dava sustentação partidária à ditadura instalada no país, apoiou uma reforma eleitoral a pretexto de facilitar a criação de mais partidos (Lei nº 6.767, de 20/12/1979). Punha-se fim ao bipartidarismo então vigente. Com receio de uma derrota desastrosa no pleito municipal, o governo militar articulou para que as eleições de novembro de 1980 fossem canceladas, alegando exiguidade de tempo entre a publicação da norma e sua aplicação. A votação só ocorreria dois anos depois, em 1982, em conjunto com a escolha dos novos governadores.
O país, desde que promulgada a Constituição Federal de 1988, também chamada Constituição Cidadã, jamais passou por circunstâncias semelhantes.
O anseio de evitar que o Sistema Democrático fosse ameaçado por mudanças casuísticas e bruscas, criadoras de desigualdades entre partidos e candidatos, foi erigido a patamar constitucional, pela incorporação a seu texto do chamado princípio da anualidade eleitoral, previsto no art. 16 da Carta Magna, que assim preconiza: “ A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.
Ficou estabelecida – no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT – qual seria a duração dos mandatos dos ocupantes de cargos eletivos à época da promulgação da Constituição Federal. Após esse período, as datas das novas eleições – estipuladas pelas Leis nº 8.214/91 (que tratou da eleição municipal de 1992) e 8.713/93 (referente às eleições gerais de 1994) – foram devidamente respeitadas.
Com o advento da Emenda Constitucional 16/1997, fixou-se que o sufrágio ocorreria sempre no primeiro domingo de outubro – e no último, em caso de segundo turno – do ano da eleição respectiva, a depender do cargo, o que até o momento vem sendo observado sem exceções. As eleições sempre foram realizadas nas datas fixadas pela Constituição de 1988.
A propósito, note-se que o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determinou a realização de plebiscito para que o povo brasileiro escolhesse a forma e o sistema de governo que vigoraria no País. Ali se dispunha que a data em que se concretizaria essa forma direta de participação popular seria 7 de setembro de 1993. No entanto, por meio da Emenda Constitucional 2/1992, houve alteração, de modo que o evento ocorreu em 21 de abril de 1993.
Além disso, tanto o referendo das armas como o plebiscito para a criação do estado de Carajás sofreram mudanças nas datas em que se realizariam. Enquanto o Decreto Legislativo 780/2005 estipulava o referendo para o primeiro domingo de outubro de 2005, tendo esse ocorrido em 23 de outubro do mesmo ano, o DL nº 136/2011 determinava que o plebiscito ocorresse no prazo de seis meses a contar de sua publicação, em 27 de maio de 2011. Não obstante, isso só veio a ocorrer em 11 de dezembro daquele ano.
Como se vê, já aconteceram mudanças nas datas fixadas para dois plebiscitos e um referendo realizados no país nas últimas três décadas. Contudo, em período de normalidade democrática, jamais houve adiamento das votações quando estava em jogo o preenchimento de cargos eletivos.
Resta discutir se o princípio da anualidade, previsto no art. 16 da Constituição Federal, poderia impedir o adiamento do pleito para os meses de novembro ou de dezembro, como já se começa a discutir.
O fato é que referido princípio já teve a sua aplicação excepcionada diversas vezes pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal.
A Lei nº 11.300/2006, que introduziu medidas para redução dos gastos e aumento da transparência nos pleitos eleitorais teve sua aplicação naquele mesmo ano admitida expressamente pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 3.741).
Em outro precedente, o STF decidiu que a criação de municípios em anos eleitorais igualmente não viola o disposto no art. 16 da CF (ADI 718).
Merece transcrição parte da ementa do acórdão proferido na ADI 3.345. Ali se registra que “A norma consubstanciada no art. 16 da Constituição da República, que consagra o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se, em seu sentido teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com inovações abruptamente estabelecidas, a garantia básica de igual competitividade que deve sempre prevalecer nas disputas eleitorais.”
Como se vê, não cabe aplicar-se o art. 16 sempre e em qualquer hipótese, mas apenas naquelas em que a inobservância da regra da anualidade eleitoral se revele capaz de implicar em casuísmo e de impor danos a oposicionistas ou a grupos minoritários.
Não é disso que se cuida quando se trata da possível alteração da data originalmente prevista para os primeiro e último domingos do mês de outubro deste ano. Tratando-se de medida eventualmente imposta por razões de natureza sanitária, voltada a salvaguardar a higidez e a saúde e públicas, nada impede a sua adoção. Estes são valores que superam em magnitude o preceito contido no art. 16 da Lei Maior. A decisão, todavia, caberá ao Congresso Nacional, a quem compete aprovar Proposta de Emenda à Constituição que defina a nova datação adequada, desde que respeitada a duração quadrienal dos mandatos de prefeitos e vereadores impostos pelo inciso I do art. 29 da CF.
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* Letícia C. S. Biondi é bacharela em Direito pelo Centro de Ensino Universitário de Brasília (CEUB), pós-graduada em Direito Constitucional Eleitoral pela Universidade de Brasília (Unb) e servidora da Justiça Eleitoral.
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