Instituições centenárias voltadas para o controle da administração pública, os tribunais de contas têm conquistado cada vez mais reconhecimento da sociedade e importância no quadro institucional brasileiro. A partir de atuações marcantes para o funcionamento das instituições, como o parecer pela rejeição das contas de uma ex-presidente, que serviu de base para seu impeachment, ou para a dinâmica da economia, como as fiscalizações sobre processos de desestatização e sobre o cumprimento de contratos de concessões de infraestrutura, sem falar na constante fiscalização da execução orçamentária e financeira da União, o TCU não apenas deixou de ser desconhecido para a maioria da população brasileira, como também passou a ser importante referência para avaliar erros e acertos da administração pública, funcionando quase como uma fonte certificadora daquilo que é confiável em termos de fatos e números.
Tamanha influência representa uma parcela de poder estatal que precisa ser exercido com absoluta prudência e responsabilidade, sob pena de perda da credibilidade tão arduamente conquistada ao longo de anos de trabalhos bem executados. É preciso cuidado com demandas ou iniciativas voluntaristas, ainda que apresentadas como tendentes a proteger os cofres públicos, pois podem pôr a perder toda a respeitabilidade que a instituição angariou.
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Uma indagação sempre presente quando se trata desse recente ganho de relevância dos tribunais de contas diz com os limites de sua atuação. Até onde vai o controle por eles exercido? O que está por ele abrangido?
O tema ganha importância à medida que os tribunais de contas, especialmente o Tribunal de Contas da União, parecem alargar seu espectro de atuação, gerando questionamentos e incômodos entre aqueles cujas atividades antes não eram alvo de ações de controle e depois passaram a sê-lo. Renomados professores e advogados de empresas concessionárias de serviços públicos até criaram um Observatório do Tribunal de Contas da União, como um fórum permanente de discussão e análise da atuação desse órgão.
De fato, o texto constitucional foi generoso com os tribunais de contas ao elencar, em seu artigo 71, o rol de suas competências. Seu inciso II é especialmente abrangente ao estabelecer que o TCU julgará as contas daqueles que “derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário”. Também o artigo 70 da Constituição, quando trata do controle externo da administração, foi substancialmente amplo, ao referir não apenas a legalidade, mas também a legitimidade e a economicidade como parâmetros de exercício do controle, que não é apenas contábil, financeiro e orçamentário, mas também operacional, o que implica avaliar eficácia e eficiência da ação estatal.
Embora extenso o rol e com alguns conceitos abertos, há limites ontológicos para essa atuação, de modo que TCU não passe a significar Tribunal de Contas Universal. Não é qualquer perda ou prejuízo ao erário que atrai a competência do TCU, ela tem de estar conectada com a atividade administrativa do Estado. Uma colisão de trânsito envolvendo bens da União não dará ensejo à atuação do TCU. Fraudes contábeis em uma empresa privada certamente darão margem à redução no pagamento de tributos e contribuições, com prejuízo para a fazenda pública, mas também isso passa longe das competências dos tribunais de contas. São ocorrências que encontrarão tratamento adequado em outras instâncias cíveis, penais ou administrativas.
Outro limite é o respeito à autonomia dos órgãos e entidades da Administração Pública federal no exercício de suas atividades finalísticas, dentro dos limites que as leis instituidoras estabeleceram ao outorgar-lhes competências. A menos que haja descumprimento de norma legal, contratual ou preceito constitucional, não cabe o exercício do controle sobre opções legítimas a respeito da forma de atuação desses entes. Vale dizer, não pode o TCU se substituir ao agente público para estabelecer quais as melhores escolhas para a administração pública, sob pena de o poder de governar se deslocar do agente político, legitimado pelo voto popular, para o órgão de controle, destituído dessa legitimidade.
Assim, não cabe ao TCU, por exemplo, controlar o mérito das estratégias de atuação da Receita Federal no combate à sonegação de impostos. Se os setores da inteligência da Receita Federal identificarem um grupo de contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas, que devam, por critérios de materialidade e risco, ser objeto de atenção especial, essa estratégia de atuação é insindicável pelo TCU. Por exemplo, se a Receita Federal decidir submeter à malha fina todas as pessoas expostas politicamente, uma vez que estão mais expostas e vulneráveis à corrupção e, portanto, mais suscetíveis a movimentar recursos financeiros de origem não declarada, não cabe ao TCU interferir nessa política de atuação que não só coíbe a sonegação de impostos, como também a própria prática de corrupção.
Além de não poder se substituir à Receita Federal na definição de suas linhas de fiscalização tributária, também não cabe pretender fazer as vezes do Fisco para aferir o pagamento de impostos por pessoas físicas ou jurídicas. Não é porque a sonegação representa um prejuízo para os cofres públicos que o TCU estaria autorizado a fazer auditorias fiscais, competência exclusiva da Receita Federal.
Se, incidentalmente, investigando um dano ao Erário causado por uma empresa contratada pelo Poder Público, o TCU deparar com algum indício de sonegação, caberá a ele encaminhar essa informação desde logo à Receita para que ela, e somente ela, apure a possível infração fiscal. Não cabe ao TCU, diante do indício, pretender apurar para só depois informar a Receita, até porque ela faz isso, autorizada por lei, de forma profissional e discreta, com todo o respeito às garantias constitucionais dos contribuintes, entre elas a do sigilo fiscal. O TCU simplesmente não tem competência para isso.
Outro limite ontológico à atuação do TCU é o controle disciplinar dos agentes públicos. Nesse campo, cabe ao TCU controlar apenas as condutas de seus membros e de seus servidores, mesmo assim, em sede de controle administrativo interno, não no exercício do controle externo. Dessa forma, não compete ao TCU investigar, para fins disciplinares, a conduta de servidores dos demais órgãos, magistrados ou membros do Ministério Público. Se no curso de um processo surgir uma hipótese ou indício de desvio de conduta funcional, cabe ao TCU informar ao órgão de fiscalização competente (CGU, corregedoria, CNJ, CNMP etc) para que ele apure e, eventualmente, sancione o agente público. Não toca ao TCU investigar condutas funcionais para depois informar ao órgão competente. Isso seria atuar fora de suas competências e configuraria abuso de poder. O TCU não é e não pode ser a Delegacia-Geral da República.
Como órgão voltado ao controle da atividade administrativa da União, não pode o TCU, sob nenhum pretexto, fiscalizar a atividade fim do Poder Judiciário ou do Ministério Público. Nenhuma decisão judicial, nenhuma decisão do Ministério Público sobre sua atividade fim, pode ser objeto de qualquer exame pelo TCU. Se o juiz recebe ou não uma denúncia, se condena ou não um réu, se homologa ou não uma colaboração premiada, se o MP decide oferecer denúncia ou promover o arquivamento de uma investigação, se decide recorrer ou não de uma decisão, se capitula uma conduta como o crime A ou B, se celebra um acordo de não persecução penal ou uma colaboração premiada, nada disso pode ser questionado no âmbito dos tribunais de contas, ainda que a matéria envolva patrimônio público.
É preciso cuidado ainda com hipóteses investigativas que são em si mesmas absurdas. Não há falar em controle pelo TCU de fantasiosos prejuízos aos cofres públicos decorrentes de atividades finalísticas do Legislativo, Judiciário ou Ministério Público que porventura tenham resultado de algum modo infrutíferas. Processos judiciais que resultaram na absolvição de réus não significam que o Ministério Público, ao propor a ação penal, provocou dano ao erário. Projetos de lei rejeitados pelo Parlamento, vetados pelo Presidente da República ou declarados inconstitucionais pelo Judiciário não configuram dano ao erário causado pelos parlamentares. Condenações anuladas por entendimentos diversos de instâncias superiores sobre a validade de provas ou de condutas das instâncias inferiores também não representam prejuízo ao Erário, assim como auditorias do TCU que não concluem pela ocorrência de irregularidades não caracterizam prejuízo ao Erário. Todos esses exemplos são situações consentâneas com o regular funcionamento das instituições citadas.
Considerar dano aos cofres públicos os gastos com processos que não resultaram em condenações, foram revertidos ou anulados por tribunais superiores é tão equivocado quanto considerar como prejuízo aos cofres públicos os custos de representações oferecidas ao TCU pelo MP de Contas que resultem arquivadas, sem que o tribunal sequer delas conheça, ou sejam consideradas improcedentes. O TCU e o MP de Contas devem ser exemplos daquilo que pregam e exigem.
Ainda no âmbito do Poder Judiciário, processos de recuperação judicial e a designação de administradores judiciais, próprios da esfera da Justiça estadual, constituem matéria completamente estranha às competências do TCU. Não é porque a função de administrador judicial constitui um múnus público que ela se enquadra nas competências dos tribunais de contas. A função do juiz é pública, o trabalho do mesário nas eleições é público, a função do legislador também é pública, nem por isso suas atividades estão sujeitas ao controle dos tribunais de contas. Nem tudo que é público está afeto aos tribunais de contas.
O prestígio e a credibilidade conquistados pelo TCU perante a sociedade brasileira decorrem de anos de atuação técnica e apolítica de seu corpo de auditores, que oferece ao exame do colegiado de ministros trabalhos de excelência, acrescidos das contribuições e provocações promovidas pelo Ministério Público de Contas. É preciso cuidado e vigilância permanentes para manter as disputas e paixões da política afastadas da ação dos tribunais de contas. Como tão bem advertiu o Ministro Benjamin Zymler, na sessão de 9/2/2022, existe um movimento que faz chegar ao TCU questões políticas não resolvidas e é preciso que se saiba lidar com essas questões e ter clareza sobre o limite entre a política e o controle administrativo.
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