Gabriel Senra da Cunha Pereira*
Seria ótimo iniciar esse artigo abordando o tema que realmente importa: a desestatização da Eletrobras propriamente dita. Porém, é o deplorável processo legislativo que deu ensejo à Lei n. 14.182/2021 que nos chama a atenção.
Em 12 de fevereiro de 2021, os Ministérios de Minas e Energia e da Economia enviaram a exposição dos motivos para a desestatização da Centrais Elétricas Brasileiras S.A., sugerindo ao Presidente da República a edição de uma Medida Provisória sobre o assunto.
Só por esse fato, já se começou muito mal. É uma verdadeira ofensa ao sistema democrático que a privatização de uma das maiores empresas estatais brasileiras seja analisada por Medida Provisória. Não se trata de privatizar ou não privatizar, mas de submeter ao efetivo debate público assunto tão importante ao interesse do país.
Segundo a exposição de motivos, o envio de MP ao Congresso seria justificável porque o Projeto de Lei enviado em 2019 pelo Executivo estaria “sem encaminhamento no Congresso Nacional”. Contudo, embora verdadeira, essa não é uma justificativa válida. Se a questão exige tramitação mais ágil, que se trabalhe pelos meios políticos-institucionais que existem para possibilitá-la. O que não se pode admitir é o atropelo do mais amplo processo legislativo sobre o tema, impondo-se ao Parlamento a açodada vontade do Poder Executivo.
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Como não poderia ser diferente, o resultado dessa tentativa de sobreposição de um poder sobre o outro foi tenebroso. Logo que recebeu a Medida Provisória, o Congresso Nacional tratou de logo alterá-lo para criar um dos dispositivos legais mais escalafobéticos da história legislativa brasileira.
Trata-se do § 1º, do art. 1º, da MP 1.031/2021, convertida na Lei n. 14.182/2021, apelidado de “parágrafo à la Saramago”. Uma ofensa ao escritor português, conhecido por seus textos de escassa pontuação e quase nenhum parágrafo, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura e um dos mais geniais dramaturgos de nossa língua.
O referido dispositivo legal tem nada menos que seiscentos e sessenta e seis palavras, quase quatro mil caracteres e nenhum, nenhum ponto final. O texto é quase ilegível, seja pela má-técnica, seja pela repulsa que causa no leitor.
O conteúdo do § 1º do art. 1º se divide em duas partes: a primeira, original, estabelece a forma de desestatização da Eletrobras, por meio do lançamento de novas ações no mercado e diluição da participação da União no capital social da empresa. A segunda, incluída pelo Congresso, trata da obrigatoriedade de contratação de geração de energia em diversas regiões do país.
Conforme amplamente noticiado pela imprensa, a junção de dois temas diferentes no mesmo dispositivo legal se deu por uma manobra dos congressistas. O raciocínio é simples: por força do art. 66, § 2º, da Constituição de 1988, o Presidente da República não pode vetar artigos, parágrafos ou alíneas parcialmente, somente o texto integral. Assim, ao incluir a obrigatoriedade de contratação de geração energética no mesmo parágrafo que dispõe sobre a própria desestatização da Eletrobras, o Congresso Nacional aceita a imposição da privatização da estatal por meio de MP, mas, por outro, impõe seus interesses ao Executivo.
O resultado de tantos erros – se é que se pode denominar assim – é a criação de uma lei cujo principal dispositivo é quase ininteligível, aprovada sem ser submetida ao debate público e afastada de qualquer controle. Com isso, o tratamento da questão essencial, que é a própria desestatização da empresa, fica relegada ao segundo plano.
Decisões como esta, que impactam fortemente na vida da comunidade brasileira, não podem ser tomadas no afogadilho. O processo legislativo é instrumento essencial ao Estado Democrático de Direito e, como tal, não pode ser menosprezado.
Que Saramago me perdoe a paráfrase, mas, na ainda frágil democracia brasileira, é essencial que não percamos tempo, mas não tenhamos pressa.
*Gabriel Senra da Cunha Pereira é advogado e Mestre em Direito Público
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