Franklin Brasil Santos*
Marcus Vinicius de Azevedo Braga*
Em março de 2012, lá se vão dez anos, o Programa televisivo Fantástico (Rede Globo) exibiu cenas de corrupção explícita, captadas por câmeras escondidas num hospital público do Rio de Janeiro, onde um repórter infiltrado negociava serviços emergenciais de limpeza, alimentação e aluguel de ambulâncias, num desses típicos quadros de câmera escondida do chamado jornalismo investigativo.
Em conversas naturais, espontâneas, os representantes de quatro grandes empresas da área de saúde ofereceram propinas, explicaram como escamotear o suborno e ensinaram a gestores os truques para fraudar as contratações, procurando tranquilizar o repórter disfarçado de comprador, porque, afinal, aquilo era a rotina, o cotidiano, a prática dominante, algo com que todos estavam acostumados.
Mesmo em nosso contexto atual, depois de tantos outros escândalos televisionados, aquela reportagem ainda se destaca, pela maneira com que os empresários evocaram princípios morais em seus acordos criminosos. Um empresário nessas gravações declarou que ensinava aos filhos, como um valor moral familiar, a lógica de proteger seu contratante e ser por ele protegido, ao avalizar a negociação de propina que seu funcionário havia combinado previamente.
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Outros agentes falaram em “troca de favores” para justificar o uso de propostas de cobertura, montadas para simular competição nas licitações, algo que seria “extremamente normal” e que só envolveria gente “correta”, para evitar “vigaristas” indesejados. Todo um discurso para defesa verbal do que seria indefensável, como se prova na reação popular à divulgação de tais diálogos.
Num momento emblemático, falando sobre a cobertura de propostas, a gerente de uma empresa, afirmou, categoricamente, que aquela era a “ética do mercado”, como se isso justificasse tudo. Um equivalente ao “todo mundo faz” ou ainda, “sempre foi assim”.
Esses diálogos dantescos revelam que as pessoas envolvidas em eventos de corrupção não ignoram que estão burlando as regras. Mas encontram uma forma de distorcer suas atitudes, ao ponto de conjurar um mundo paralelo, onde a ética invertida, a antiética, transforma a trapaça em regra do jogo, incorporada de forma tão enraizada, que naturaliza e até exalta o que, aos olhos da esmagadora maioria dos espectadores, causa repulsa e indignação.
Não se fala em consequência daquelas ações, dos preços inflados, em relação a oferta de saúde aos cidadãos. Buscam-se explicações rasas, que enquadram tudo como inevitável, como um movimento natural para aplacar a consciência quando indagado pelo jornalista disfarçado de comprador.
Na literatura científica, há um nome para esse fenômeno: racionalização da fraude.
Quem tratou disso inicialmente foi o criminologista Donald Ray Cressey , em obra seminal de 1953, criando a ideia do Triângulo da Fraude, segundo a qual existem três fatores que explicam uma atitude fraudulenta: pressão, oportunidade e racionalização. A pressão pela qual o transgressor está passando é a causa-raiz da fraude (por que fazer?), que leva o indivíduo a buscar ou aproveitar uma oportunidade para fraudar (como?), racionalizando suas ações (por que não?).
O fraudador busca justificar, para si e para os outros, que a ação não é errada ou, ainda que seja, amenizar a situação, flexibilizando a ética. Ou criando uma nova, como a “ética de mercado”. É uma forma de desfigurar a conduta, de torná-la aceitável, moldando a consciência, para tornar palatável para si e para os mais próximos.
Uma publicação da Alliance for Integrity listou as dez desculpas mais comuns dos corruptos, coisas como: “eu não sabia que era corrupção”; “não fiz por mim, fiz pela empresa”; “é assim que se fazem negócios por aqui”; “se a gente não fizer, alguém fará”. Um repertório bem parecido com o dos personagens da reportagem do Fantástico.
Ana Luiza Pedrosa Paschoal e outros pesquisadores (3) avaliaram centenas de relatórios da CGU, na perspectiva do Diamante da Fraude, que acrescenta ao Triângulo de Cressey o fator “capacidade”. Conclui a pesquisa que a principal desculpa dos gestores, diante de irregularidades, foi a justificativa moral do ato ou a tentativa de torná-lo socialmente válido.
No contexto da chamada Operação Lava Jato, delatores afirmaram que a coisa estava enraizada assim há décadas, um negócio institucionalizado, considerado “normal” entre os envolvidos. Para suavizar as consciências, propinas eram chamadas de “ajuda de campanha”. O eufemismo é um recurso comum da racionalização.
Quando o sujeito agride preceitos morais razoavelmente consensuais na sociedade, pressupostos normativos da vida coletiva, sua consciência demanda a criação de uma história de cobertura, que permita uma interpretação confortável, para acomodar a transgressão pelo poder mágico de um discurso, como na emblemática narrativa de Hannah Arendt (4) sobre o nazista Adolf Eichmann, que justificou suas atrocidades em função do cumprimento de ordens superiores.
Estudos da economia comportamental, como os de Dan Ariely (5), reforçam essa ideia, passados mais de meio século das ideias de Cressey, indicando que atos corruptos derivam da racionalização que os indivíduos fazem da sua imagem perante o grupo social, na busca de manter para si e para os outros uma imagem de integridade. Isso desafia a lógica do freio puramente matemático, da equação entre o custo da punição em relação ao benefício da transgressão.
O corrupto é um indivíduo inserido em um jogo lucrativo de extração de valor de relações com órgãos públicos, associado a agentes desses órgãos. Não é um monstro ou uma máquina, e nesse contexto social e psicológico precisa de narrativas para desempenhar seus papeis e explicar certas coisas quando indagado. Nada mais humano…
Essas reflexões são importantes em muitos aspectos. Para nós, em especial, no debate das ferramentas de combate à corrupção, superando concepções equivocadas de moralismo ou cinismo exacerbado. Não somos um povo inerentemente corrupto, assim como a corrupção não acontece apenas no quintal dos outros, longe de nós.
Precisamos de maturidade institucional para avançar em transparência, accountability e controle social, reforçando as normas e valores consensuais, na busca por impedir, ou ao menos dificultar, as artimanhas de éticas alternativas, inventadas para satisfazer consciências perturbadas, contrapondo esses artifícios com uma visão de que aquele ato é corrupto, pois está desviando recursos coletivos de seus destinatários legítimos, para o benefício ilegítimo de poucos, e isso afeta o tecido social e o futuro das gerações.
O indivíduo que age de forma corrupta, conseguindo ao mesmo tempo manter uma imagem palatável para si e para os outros, é uma questão que não resiste à transparência ativa e em linguagem cidadã dos atos de gestão, bem como a definição clara da regra do jogo, do que se deseja com aquela política pública e as regras que pautam aquele desenho. Transparência e uma estrutura clara de normas e de governança são medidas estruturais que inibem esse aspecto pessoal do fenômeno da corrupção.
A questão se complica ainda mais em tempos de pós verdade, de crenças que se sobressaem a evidências, de imagens destruídas por versões, acrescentando à lógica da racionalização de Cressey ou da percepção de Ariely, as múltiplas versões e narrativas possíveis, na construção da imagem exterior e interior, como a (anti)ética do mercado. Desafios de um mundo novo, que ainda arrasta problemas antigos.
*Franklin Brasil Santos é Doutorando em Engenharia e Gestão pelo Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa. Mestre em Controladoria e Contabilidade pela FEA/USP.
*Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutor em Políticas Públicas (UFRJ) e atualmente realiza estágio pós doutoral no Instituto de Saúde Coletiva (UFRJ).
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