Os conflitos de natureza étnico-racial-religiosa que envolvem os adeptos das religiões afro-brasileiras e os pentecostais não são nenhuma novidade no Brasil. O conflito é característico da vida social, em relação às religiões de matrizes africanas o conflito tem efeitos e dimensões múltiplas específicas constituídas pela situação brasileira.
Um retorno ao passado nos faz compreender a origem deste conflito tendo seu início na Diáspora Africana, seguido da perseguição estatal que institucionalizou na constituição de 1824 o catolicismo como religião oficial do Estado, marginalizando outras expressões; e nos períodos subsequentes de 1889 a 1945, com as reformulações no Código Penal que institucionalizaram a perseguição, fundamentada no imaginário social de que os religiosos de matriz africana lidavam com forças ocultas.
Nesse sentido, na cidade do Rio de Janeiro, a materialidade deste conflito se deu com a apreensão de aproximadamente 500 objetos sagrados, no período de 1889 a 1945. A apreensão desses itens assegurou a permanência dos mesmos sob tutela da polícia civil por cerca de 100 anos, até que a mobilização política realizada pelos afro-religiosos conquistasse o direito de ter os itens salvaguardados pelo Museu da República em 2020.
A violência contra os espaços de socialização religiosa de matrizes africanas e seus praticantes foram constantes, pois esteve atrelada a concepção de uma hierarquia cultural e racial. Além da própria política de embranquecimento, que de forma capilarizada tentou apagar os traços físicos, culturais e religiosos da população negra no Brasil. Embora o Estado brasileiro tenha sido predominantemente protagonista deste conflito naquele período, integrantes de outras religiões também estiveram envolvidos em denúncias e desavenças com os religiosos de matrizes africanas.
Desde a década de 1970, os neopentecostais e evangélicos de diferentes doutrinas formam um grupo religioso que se expande territorialmente, politicamente e economicamente no Brasil e mundo afora. Este grupo tem estado diretamente envolvido nas dinâmicas de conflitos cujo os ataques virtuais, televisivos, verbais, físicos e patrimoniais contra as religiões de matrizes africanas, são noticiados na mídia e compartilhados nas redes sociais.
Um episódio inesquecível foi o falecimento de Mãe Gilda, no dia 21 de janeiro de 2000, que ocorreu após sucessivos ataques a sua integridade física e moral, sendo o último deles a publicação de sua fotografia na capa do jornal Folha Universal com a seguinte manchete: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.
Como forma de reconhecimento, o Governo Federal instituiu, no ano de 2007, o dia 21 de janeiro como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, mas ficaram as perguntas: Quem trará Mãe Gilda de volta para sua família de santo e carnal? Como o povo de santo irá se proteger? Qual política pública o Estado brasileiro criará para impedir casos como esse?
Na perspectiva dos afros religiosos, este sentimento de vulnerabilidade, a violação de direitos sofrida e a resistência pela manutenção do culto, da diáspora até os dias atuais, transcenderam as ações de controle do Estado e a discriminação por parte de outros grupos religiosos. Essa resistência constante abriu espaço para um movimento de organização política dos terreiros contra o racismo religioso. Contudo, cabe aqui ressaltar que o povo de santo, diferentemente do que pensa parte da sociedade brasileira, faz política dentro e fora do terreiro. Algumas organizações dos povos tradicionais que dialogam com o poder público, em suas diferentes esferas, são o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, as Mulheres de Axé do Brasil e a Comissão de Combate a Intolerância Religiosa (RJ). Essas organizações que unem indivíduos de diferentes campos de atuação buscam debater, para além da liberdade de culto, o sistema alimentar, práticas de enfrentamento ao racismo, os direitos das mulheres, o direito ao abate tradicional e ritualístico, e a preservação dos direitos dos povos tradicionais de matriz africana.
É importante frisar que este debate, e consequentemente os conflitos, estão intrinsecamente ligados a questão racial, pois a origem negra-africana, da religião está em contraposição às ideologias de dominação racial e discriminatórias. Por essa razão, a categorização racismo religioso tem sido cada vez mais aprofundada no campo acadêmico e utilizada no campo religioso, ao invés da categoria intolerância religiosa. Como dito em um artigo anterior, a construção do imaginário social da sociedade brasileira foi fundamentada na lógica da suspeição e da discriminação racial. A maior parte dos brasileiros ao avistarem uma, ou mais pessoas negras, vestidas com roupas brancas e/ou utilizando turbantes, rapidamente acionam a memória social e coletiva e as reconhecem como “macumbeiras”, “feiticeiras”, “coisa de preto” e pensam “deus me livre” e “coisa do diabo”. Essas classificações de ordem pejorativa e também acusatória, vão na contramão da pluralidade religiosa, rejeitam a existência de uma visão de mundo e a representação visual de uma identidade e trajetória religiosa.
É preciso reconhecer que apesar das situações de violência contra as pessoas de religião de matriz africana serem muito presentes, ainda não foram suficientemente visibilizadas publicamente. Há uma ausência de produção de dados públicos – que possibilitariam políticas públicas mais efetivas – e de cobertura midiática. Sem contar o profundo descaso em relação as denúncias, sendo muitas vezes consideradas “brigas de vizinhos”.
Apesar de a Constituição Brasileira, em seu Artigo V, Inciso VI, considerar inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e as suas liturgias; ainda percebemos como desafio, em pleno ano de 2021, o convívio numa sociedade diversa e o exercício individual e coletivo da liberdade religiosa no Brasil.
Neste sentido, as ações de mobilização dos afros religiosos e entidades dos movimentos negros, tem garantido que os conflitos de natureza étnico-racial-religiosa sejam tratados como parte de uma agenda político-religiosa estadual e nacional. Esse tratamento assegura a criação de políticas públicas como a Lei Nº 17.157 contra a discriminação por motivo religioso, no estado de São Paulo, a criação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (RJ) e a recente instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Intolerância Religiosa no Rio de Janeiro que visa compreender e investigar a dinâmica do fenômeno através de ação parlamentar.
A liberdade religiosa é um direito garantido. Não só na Constituição Brasileira como também na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O que os povos tradicionais de matriz africana esperam enquanto cidadãos brasileiros é que esse direito seja respeitado e cumprido sem que mais terreiros sejam invadidos e religiosos como Mãe Gilda percam a vida.
Por fim, enquanto mulher negra e de axé, finalizo este artigo com uma das frases mais importantes da educadora e defensora da cultura e religiosidade de matriz africana, Makota Valdina: ” Eu não quero tolerância, eu quero que me respeitem. Respeitem o direito que eu tenho de ser do Candomblé.”
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