*Júlio Roberto de Souza Pinto
Sempre existiu racismo no Brasil, embora os discursos dominantes ao longo do tempo quisessem ocultá-lo, negá-lo ou minimizá-lo. O discurso hegemônico no país nas últimas décadas, porém, pretendeu criminalizá-lo.
A Constituição de 1988 erigiu o repúdio ao racismo como princípio a reger nossa República Federativa em suas relações internacionais (art. 4º, VIII) e constitui a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, XLII).
Recentemente, entretanto, apesar de sua criminalização, temos presenciado o aumento de práticas racistas no Brasil. Pouca gente, todavia, percebe a relação desse alarmante fenômeno com outro: a ressurgência do nacionalismo.
O termo “nação” é um significante vazio que simboliza uma plenitude ausente, ou seja, aquela comunidade cultural e política que é imaginada exatamente porque não pode ser plenamente realizada.
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O objetivo dos movimentos nacionalistas é, portanto, hegemonizar o conteúdo do significante vazio “nação”, atrelando-o a um significado transcendental capaz de, de uma vez por todas, romper o jogo de significados. Como tal, os movimentos nacionalistas tendem a definir nação em termos de “pátria”.
Pátria, por sua vez, envolve uma referência transcendental a uma necessária relação entre sangue e solo. Essa essencialização da relação entre ser e lugar, constitutiva do nacionalismo, depende, entretanto, da essencialização de um ser em termos da definição de um ethnos privilegiado, distinto e unificado que habita o território nacional. Em outras palavras, a interpelação autorreferenciada de uma raça superior com laços privilegiados ao solo nacional depende da interpelação heterorreferenciada de outras raças, inferiores, que estão dentro ou fora da nação.
Tais interpelações auto- e heterorreferenciadas de indivíduos como pertencentes a certa raça, definida em termos tanto biológicos como culturais, estão na base do racismo. Diferentemente de outros fenômenos de intolerância e xenofobia observados no passado, o fenômeno do racismo surge com o discurso da modernidade e do nacionalismo (Pinto; Mignolo, 2016).[i]
Em que pese a nem sempre se manifestar da mesma maneira nas diferentes práticas nacionalistas, o racismo é a condição determinante de sua produção. Na verdade, a relação entre nacionalismo e racismo é de mútua determinação. Os discursos nacionalistas e racistas estão intrinsecamente ligados, mas a relação entre nacionalismo e racismo não é de causalidade.
O racismo produz o ethnos fictício em torno do qual o discurso nacionalista é articulado. Esse ethnos fictício é produzido por movimentos nacionalistas por meio da exclusão do outro, que a seu turno é construído por intermédio da rearticulação das diferenças em uma cadeia de equivalências.
Essa cadeia de equivalências pode construir diferentes grupos étnicos como pertencentes a uma massa indistinta de pessoas consideradas inferiores devido à sua raça biológica. Mas o racismo também pode operar dentro de um sistema de diferenças por meio da associação de certas identidades étnicas com traços culturais construídos com sendo incompatíveis com os valores e as normas do ethnos predominante.
Tanto o racismo biológico como o cultural envolvem a estigmatização do outro. Isso se inscreve em práticas sociais de discriminação, intolerância, humilhação e eliminação, assim como em representações fantasiosas que invocam a necessidade de purificar o corpo social para preservar sua identidade e protegê-lo de toda forma de mistura, miscigenação e invasão.
Tais representações fantasiosas de racismo podem desenvolver-se espontaneamente como parte das práticas sociais ou podem ser resultado de doutrinas engenhosamente formuladas. A força dessas doutrinas reside no fato de que provêm chaves interpretativas a indivíduos em um mundo crescentemente dividido. Ou seja, funcionam como princípios hermenêuticos a permitir que as pessoas atribuam algum sentido a um mundo cada vez mais caótico e nele, de alguma forma, consigam se posicionar.
O perigo está em esse mito se transformar em um imaginário social a prover o horizonte último de sentido e ação. Em outras palavras, o perigo reside em o racismo deixar de ser apenas um entre vários para se tornar no único princípio hermenêutico capaz de revelar os segredos da ordem social e os inimigos que têm conspirado para privá-la de sua plenitude.
[i] Pinto, J. R. de S., & Mignolo, W. D. (2016). A modernidade é de fato universal? Reemergência, desocidentalização e opção decolonial. Civitas – Revista De Ciências Sociais, 15(3), 381-402. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.3.20580.
*doutor em Sociologia pela UnB com pós-doutorado em Oxford e Duke, advogado e professor do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados, atualmente ministrando a disciplina “Teoria e análise do discurso”.
Fiquei surpreso pela extrema qualidade deste artigo. É a primeira vez na América Latina que vejo um veículo altamente objetivo colocar uma questão que muito incomoda nosso chauvinismo neocolonial, mas que é frequente entre a intelectualidade dos países mais desenvolvidos e democráticos. Ambos, racismo e patriotismo, são pretextos para identificar grupos humanos como inferiores ou indignos. Ambos foram os maiores princípios do nazismo, o fascismo e o falangismo. A correlação entre o racismo e o supremacismo nacionalista é inquestionável. Parabéns aos autores!