Não perca seu tempo lendo isto aqui porque vou apresentar uma proposta tão ousada e atrevida que não tem a menor chance de ser, ao menos, debatida nas instâncias superiores. Aposto que será chamada apenas de delirante.
Ah, você ainda está aí? Então ficou curioso. Vamos em frente. Mas vá até o final, lá tem uma surpresa.
Temos acompanhado com atenção a angústia dos dirigentes de instituições universitárias diante dos impasses criados pela pandemia. O que fazer para não paralisar as atividades acadêmicas; garantir o mínimo de avanço dos alunos em seus cursos usando as tecnologias disponíveis para a oferta remota de conteúdos; disponibilizar computadores, tablets e conexão para estudantes de baixa renda e capacitar professores e alunos, em tempo recorde, para garantir o domínio do uso das plataformas e dos aplicativos? E como fazer, também em tempo recorde, a adaptação dos conteúdos teóricos e práticos das diversas disciplinas para transmissão pelos meios disponíveis, inclusive os convencionais como canais públicos de rádio e TV?
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É compreensível tal apreensão por parte dos administradores de entidades acadêmicas. O desafio da inclusão é enorme e há ainda o risco de serem criticados pelo recebimento de recursos públicos sem as aulas estarem acontecendo. Mas as próprias circunstâncias oferecem argumentos sólidos para a prudência neste momento. E o principal deles é o respeito pelo bem maior: a vida.
Os que atuamos na área da comunicação bem sabemos das limitações dos media. Para atrair a audiência, os meios se desdobram no uso de fotografias, computação gráfica, músicas de fundo, linguagem apropriada, edição ágil e profusão de imagens. Inclusive no rádio. Dependendo da plataforma, vídeos comerciais não passam de três minutos de duração, sob pena de dispersão da audiência. Lives de shows musicais de famosos chegam a durar até algumas horas, mas com superproduções. E o conteúdo é puramente lúdico, não exige a concentração de uma aula teórica.
Agora imagine uma aula de cálculo captada pela tela de um celular por um estudante numa casa onde não há espaço para isolamento nem conforto acústico e muito menos a tranquilidade essencial para a absorção do conteúdo? Por isso o ceticismo de muitos profissionais da área de educação sobre a efetividade do ensino remoto, mesmo nas disciplinas puramente teóricas. É de se reconhecer, de uma vez por todas: por mais sofisticado que seja o conteúdo, nada substitui o presencial.
Igualmente, devem ser reconhecidas as dificuldades trazidas pela pandemia. Tudo isso justifica esta proposta radical. Que consiste basicamente em três medidas:
– que na volta às aulas não-presenciais sejam oferecidas exclusivamente as disciplinas teóricas cujos conteúdos sejam minimamente adaptáveis ao formato de aula remota;
– que se transfiram todas as demais disciplinas, sobretudo as práticas, para os semestres seguintes, assumindo corajosamente o ônus que tal decisão acarreta. E que se faça a conversão do semestre para formatos compactados como os dos cursos de verão;
– e, por último, que sejam oferecidas de forma massiva aos estudantes de todas as áreas novas disciplinas, ou até disciplinas já existentes, mas todas as áreas de humanidades, com ênfase naquelas cujos conteúdos sejam atraentes e dinâmicos, como os de arte e cultura (teatro, música, literatura, cinema, artes plásticas etc.). Que tal propiciar o acesso a grandes obras do cinema nacional tanto de ficção quanto aos documentários premiados? Grandes concertos de nossa música popular e erudita? Visitas virtuais a museus e bibliotecas? Grandes acervos de nossa pintura, de nossas artes gráficas, de nossa arquitetura, de nosso patrimônio histórico? Obras-primas de nossa literatura? Conhecimento dos momentos decisivos de nossa história? Já pensou poder oferecer aos estudantes a chance de assistir “Bye Bye Brasil”, de Cacá Diegues, com comentários de um professor de cinema? Ou “Rock Brasília”, comentado pelo próprio autor, o ex-professor da UnB, Vladimir Carvalho? Nessas aulas à distância será possível empregar muitos daqueles recursos utilizados pelos media, lembrados lá no início. Com chances bem maiores de atração e retenção da audiência.
O momento, com todos os seus percalços, permite – e até recomenda – tal ousadia. Se puser a ideia em prática, a universidade estará ofertando tanto um básico mínimo dos conteúdos “hard” dos diversos cursos como, simultaneamente, estará preenchendo uma lacuna histórica: a dos conteúdos de humanidades, essenciais para a formação integral em todos os campos.
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Não estou sozinho nessa ideia, tenho boa companhia. Na aula em que recepcionou os calouros do primeiro semestre de 2019 na UnB, o escritor Milton Hatoum afirmou:
“Nós tendemos muito à especialização e deixamos de lado a formação humanista. Esse é um caminho para a barbárie, porque você não entende o funcionamento de uma sociedade se não faz uma leitura da história, do país em que você vive. A barbárie está basicamente em relação aos outros”.
E lembrou um exemplo local – o do engenheiro Joaquim Cardoso, responsável pelo cálculo estrutural das obras revolucionárias de Oscar Niemeyer, como a Catedral e o Congresso Nacional. E que foi, ao mesmo tempo, um grande poeta, com uma sólida formação humanística. Hatoum apresentou um testemunho baseado em suas vivências na Universidade da Califórnia, onde notou grande interesse de alunos de medicina, engenharia, física e química, pela literatura latino-americana. “A boa literatura tem uma dimensão ética e estética, e a ausência disso pode tornar os jovens profissionais pessoas conformistas e alienadas. E não se trata de ideologia, trata-se de formar o aluno com uma visão crítica”.
Melhor pecar por excesso do que por omissão. Por isso reuni coragem para tomar a decisão de trazer a lume essa ideia de uma overdose de humanidades durante a pandemia, iniciativa atrevida mas que pode até ter desdobramentos futuros e permanentes, quando o dia claro da normalidade nascer de novo.
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