Cinco palavras, coincidentemente todas iniciadas com a letra P, sintetizam os conceitos basilares dos tratados de convivência para uma nação, nas suas relações internas e externas.
Elas foram escolhidas em 2015, depois de dois anos de debates multi e interdisciplinares que buscaram identificar quais as questões centrais para a humanidade, aquelas sem as quais um futuro de bem estar se tornará impossível. Foram acordadas por diplomatas e autoridades de alto escalão de 193 Estados-membros da ONU, com a assessoria de especialistas governamentais e não-governamentais nas áreas socioambiental e econômica.
Essa negociação foi tão intensa que seu “último dia” iniciou numa sexta-feira pela manhã e foi concluído somente na tarde do domingo, um verdadeiro teste de resistência psicológica e física (ninguém deixou o prédio da ONU até o final, as delegações cochilavam por seus corredores nos intervalos) de uma disputa tensionada porque, justamente, em se tratando de uma decisão que valeria para todo o mundo – e para todo mundo –, cada palavra importava, e muito.
O desenrolar das eleições americanas explica o por quê de tantas mentes brilhantes concluírem e acordarem que cuidar das “Pessoas, do Planeta, da Prosperidade, da Paz e de Parcerias” devem estar no topo das prioridades de todos os governos, sejam estes de países-ilhas ou dos gigantes continentais como os EUA e o Brasil. Mas, infelizmente, como nos alertou o mestre Machado de Assis há dois séculos, o tempo é um rato roedor das coisas, que as diminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto. E, o que o governo americano pactuou em 2015 foi rapidamente desconsiderado por Trump. A conta dessa decisão chegou, semana passada, literalmente pelos correios.
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A tragédia brasileira ainda se desenrola, mas a vitória de Biden e Harris (conquistada com esforço e estratégia) e a derrota de Trump (que também cavou a própria derrota) indicam que quem decide brigar com essas palavras, e especialmente brigar com todas ao mesmo tempo, deve se preparar para encarar o fracasso. Ainda não entendeu? Explico.
Cabe a qualquer governo essencialmente cuidar das Pessoas e é exigência da função presidencial em países democráticos que o faça sem distinções, olhando particularmente para as que mais precisam do Estado. A escolha de Trump foi cuidar de apenas algumas delas e, Donald sendo Donald, optou por, sobretudo, cuidar de si mesmo. Ele será lembrado para sempre por sua desastrosa política contra imigrantes ilegais, pelo uso da violência contra afro-americanos e pela terrível resposta à covid-19 que, até o momento, já ceifou mais de 240 mil vidas nos Estados Unidos.
É verdade que, na economia, ele soube colher o fruto de várias políticas plantadas por Obama, o que lhe rendeu a recuperação de empregos depois da grande recessão iniciada em 2008 e deu-lhe a chance para reduzir tributos de corporações e dos mais ricos.
O mercado se manteve aquecido. Mas, figurativamente, não é possível dizer o mesmo das 40,6 milhões de pessoas que vivem na pobreza e das 33,1 milhões que estão abaixo da linha de pobreza, de acordo com o Bureau de Censo Americano.
Enquanto isso, ele próprio, seus empreendimentos e sua família se beneficiaram diretamente de uma presidência que, de forma evidente, foi, desde o início, transformada em um balcão de negócios. Já em 2016, a Bloomberg mostrou como seus negócios captaram 14,6 milhões de dólares durante a campanha à Casa Branca.
Em 2017 o Trump International Hotel em Washington se transformou no centro do lobby nacional e, segundo a Agência EFE, já neste ano faturou inesperados 1,9 bilhão de dólares. Mais recentemente, a Forbes identificou que o seu resort Mar-a-Lago, na Flórida, recebeu, durante seu mandato (dados até 2019), 69 milhões de dólares oriundos dos cofres públicos. Ou seja, só nestes três exemplos ele recuperou os 66 milhões de dólares que investiu com recursos pessoais na campanha pela presidência.
Ainda em âmbito doméstico, além de voltar a investir em indústrias poluidoras, reverter uma centena de leis regulatórias pró-meio ambiente e controle de emissões poluentes, Trump decretou uma verdadeira guerra ao Planeta, elegendo como arqui-inimiga uma adolescente, a ativista Greta Thunberg, que se mostra muito mais madura do que o homem de 74 anos, presidente da maior potência bélica e econômica mundial. Um de seus últimos atos, não por coincidência, foi a formalização, no dia 4 de novembro, da saída dos EUA do Acordo de Paris sobre o Clima.
Na política externa, sua atitude nacionalista, protecionista e unilateral não deixou de ser contraditória, escanteando velhos aliados e atacando os direitos das mulheres e da população LGBTQI+. Ele iniciou seu governo já comprometido com a Rússia, desde a interferência deste país nas eleições, e logo criou confusão comercial com a China, transformando-a em inimigo do povo americano, o que, ao fim e ao cabo, só favoreceu a Xi Jinping, que viu crescer sua popularidade, seu soft power e seus negócios internacionais.
O governo Trump será mais lembrado por blefes, fake news e agressões gratuitas do que por resultados positivos. Em “casa”, atacou, de forma racista, quatro congressistas estadunidenses e a Europa jamais esquecerá que sua maior líder, Angela Merkel, exemplo de uma estadista altamente competente, foi xingada de “estúpida” por Donald. Repito: chamada de estúpida por Donald!
Era evidente que, num país que preza a democracia, tamanha arrogância não tinha como dar certo e, for God’s sake, as Parcerias que escolheu, até em âmbito interno, eram as piores possíveis. Seu mandato se iniciou com uma aliança fortíssima com grupos cristãos conservadores que, segundo o New York Times, ao longo destes quatro anos influenciaram a nomeação de quase 200 juízes vitalícios, de uma embaixada em Jerusalém e de três ministros para a Suprema Corte, medidas essenciais para efetivar as desastrosas políticas contra direitos sexuais e reprodutivos que marcaram o período.
Suas alianças baseavam-se em conspirações e sua ação política foi forjada sobre princípios insustentáveis, incitando seus grupos de apoio contra inimigos que criava e para relativizar amizades da vida inteira à medida que se tornavam inconvenientes, como foi o caso do milionário pedófilo e comandante de uma rede de tráfico e exploração sexual de menores, Jeffrey Epstein que, aparentemente, se suicidou na cadeia. “Um cara ótimo”, segundo o presidente americano.
Em choque constante com a legalidade, Trump, apesar de absolvido pelo Senado, teve seu impeachment aprovado na Câmara e não surpreende que o chefe da sua campanha, Paul Manafort, peça importante no caso da interferência russa nas eleições de 2016, tenha sido condenado por oito crimes.
Nada demais, certamente, perto do próprio Trump, bastante acostumado a julgamentos: nos últimos trinta anos, segundo documentos públicos, ele esteve envolvido em mais de 4.000 processos. Suas empresas, que já acumulavam mais de 450 mil processos legais contrários antes de ele assumir a presidência, tiveram 150 mil novos litígios abertos durante seu mandato.
Em 2020, com tamanho histórico de raiva e de pouco desejo em cuidar de quem não fosse aliado, com atos de nepotismo e exemplos de intromissão familiar em assuntos de Estado, estava estabelecido, principalmente junto ao eleitorado urbano, negro, jovem, imigrante e feminino, que esse presidente, mais ocupado em construir muros do que estabelecer pontes, jamais os levaria à Prosperidade ou à Paz. Ele representou com maestria os valores da supremacia branca e a disseminação da intolerância cívica, apostando todas as fichas na divisão como estratégia de conquista. Incapaz de agregar, sempre reagiu com violência, chegando ao cúmulo de usá-la contra crianças: o mundo jamais esquecerá a truculenta decisão de separá-las de suas famílias na fronteira com o México e que 545 delas ainda seguem sem qualquer notícia de seus parentes.
Assim, revisitando esses últimos quatro anos, lembrei ainda que a vitória em 2016 não era esperada nem pelo próprio Trump e, com muita tristeza, é impossível evitar comparações com o Brasil. Eu imagino, e só imagino, que o derrotado presidente americano, ainda que um dia consiga se libertar das narrativas golpistas e de fraudes eleitorais, jamais entenderá o que houve, e então desenho: não será mais possível sair impune quando se tripudia dessas cinco palavras que, unidas, vieram para mudar paradigmas e transformar o mundo.
Isto posto, é fácil concluir que cuidar das Pessoas e do Planeta, investindo em Parcerias que conduzam à Paz e à Prosperidade, foi uma decisão internacional acertada, que a eleição de J. Biden e K. Harris apenas reafirma. Não há dúvidas de que esta foi uma vitória do ideal democrático e desses cinco Ps que dão hoje a direção e os limites para a gestão pública e para o desenvolvimento sustentável. Limites estes que, se cruzados, como mostraram as eleições americanas, são capazes de derrubar até Presidentes.
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