Os acordos de não persecução penal foram admitidos recentemente pela legislação nacional (Lei 13.964 de 2019) e, por certo, irão causar uma grande reviravolta na forma como a Justiça Criminal se comportou durante décadas, para não dizer nos últimos dois séculos de nossa história.
Inicialmente, se faz conveniente registrar que a história dos presídios não é tão longeva como muitos imaginam. Embora algumas formas de encarceramento estejam presentes na história humana desde muito cedo, o fato é que na Justiça Criminal, durante séculos, prevaleceu a pena de morte.
Na época do descobrimento, vigoraram no país, as Ordenações Portuguesas, antigos códigos de legislação de Portugal, os quais foram aplicados ao Brasil, enquanto éramos colônia. Essas Ordenações traziam com profusão, para muitos crimes, a pena de morte.
Somente no século XVIII, com o advento das ideias iluministas, a vida humana passou a obter um maior respeito da Justiça Criminal, e especialmente após a difusão dos conceitos de Cesare Bonesana (1738-1794), Marquês de Beccaria, o qual defendeu a aplicação dos princípios iluministas no âmbito da Justiça Penal. Suas ideias, registradas na obra dos delitos e das penas, ainda muito atuais, resultaram numa revolução na forma de aplicação das penas.
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A partir de Beccaria e do Iluminismo, a pena de morte vai gradativamente saindo de cena na Justiça Criminal, embora ainda esteja presente em alguns rincões, e vai sendo substituída pela pena de prisão, pena essa que possui algumas variações de forma e de nomenclatura: reclusão, detenção, até chegarmos à prisão domiciliar, que para alguns é uma mera ficção jurídica sem eficácia na vida real.
Faz algumas décadas que a Justiça Criminal conhece as penas alternativas à prisão, são elas: a prestação pecuniária, a perda de bens e valores, a limitação de fim de semana, a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, a interdição temporária de direitos (art.43 do Código Penal).
Ou seja, gradativamente, o leque de opções para punições vai aumentando e deixa de se concentrar obrigatoriamente na pena de prisão.
Essas penas alternativas, todavia, são vistas com muita desconfiança por parte dos órgãos repressivos do Estado que as consideram insuficientes para a prevenção e repressão da criminalidade.
Em verdade, esse debate não avança enquanto não discutirmos separadamente cada tipo de criminalidade. Não se pode discutir soluções para homicídios juntamente com furtos ou estelionatos. Não se encontrará uma única solução que sirva concomitantemente para drogas e crimes sexuais ou para delitos de trânsito. Assim, é preciso ter absolutamente claro que o mundo da ilicitude é gigantesco e atinge todas as formas de relações interpessoais. Não é viável reduzir a complexidade desses conflitos a uma única solução: a pena de prisão.
No entanto, a cultura de um povo não se move muito rapidamente, embora os novos meios de comunicação de massa estejam acelerando significativamente esse processo. E dentro das corporações, a mudança cultural é ainda mais lenta dado o arcabouço do sistema que visa a preservação dos interesses do grupo.
O fato é que há um apego exagerado a ideia de que a pena de prisão é a única solução eficiente no combate à criminalidade. Na verdade, isso depende muito de qual tipo de criminalidade queremos combater.
As multas de trânsito em valores astronômicos, dos últimos anos, fizeram alguma diferença em relação a determinados tipos de infrações de trânsito. Não resolvem todos os problemas dessa área, mas são um método eficiente para alguns delitos. As sanções, para quem for flagrado dirigindo após ingerir bebida alcoólica, dissuadiram muitas pessoas desse comportamento de risco. Já o excesso de velocidade em rodovias possui várias causas e sua repressão desafia a eficácia desse tipo de punição, já havendo quem defenda abertamente a volta dos obstáculos em determinados locais por serem mais eficientes na redução da velocidade.
Em suma, o combate aos desvios de conduta (comportamentos ilegais) exige um amplo leque de formas de desestímulo, os quais não podem se resumir a uma única pena: o encarceramento.
Há condutas danosas à sociedade, mas que não comportam pena de prisão. É verdade que possuímos indivíduos violentos, os quais não aceitam quaisquer formas de contenção, e que com seus comportamentos criminosos causam danos de difícil ou impossível reparação nas outras pessoas (homicidas, latrocidas, estupradores e outros). Todavia, excluindo os casos violentos, especialmente os de violência exacerbada, nos demais ilícitos é preciso utilizar outras formas de punição.
Aliás, quem conhece os presídios mais de perto sabe que eles são uma grande fonte de problemas para a sociedade. Criados no intuito de encarcerar os rebeldes, os avessos à ordem, acabaram por se transformar em verdadeiras escolas da criminalidade. Nos presídios, a violência ganha tração, se exacerba e chega a níveis de crueldade inimagináveis para o cidadão comum. Além disso, exigem gastos de dinheiro público muito acima daquilo que o Estado fornece para os cidadãos honestos e cumpridores de suas obrigações. Nos presídios, o Estado fornece habitação, alimentação, assistência à saúde, e até segurança externa armada, gratuitamente, aos presos. Não é à toa que alguns defendem a ideia de que os presos deveriam pagar a estadia, mas essa exigência nos remeteria de volta à escravidão, onde pessoas eram submetidas ao trabalho forçado e na base do açoite.
Portanto, resta desenvolver formas mais eficazes de repressão que permitam desestimular as pessoas de comportamentos ilegais, sem que isso implique necessariamente em mais encarceramento.
O Brasil ostenta o título de ser um dos países com grande população carcerária, mas ela é proporcional ao tamanho da sua população. Todavia, é fato que esse contingente de pessoas cresceu absurdamente em todo o mundo em razão de diversos fatores, destaco o crescimento populacional das últimas décadas e a conhecida guerra às drogas.
Na década de 80 do século passado, o maior contingente de presos no país era de autores dos crimes de roubo e furto, considerados crimes contra o patrimônio. Os traficantes de drogas eram poucos, o problema estava em seu início. Nos últimos tempos, o número de traficantes presos se tornou substancialmente maior que o de assaltantes e furtadores. Embora o tráfico de drogas seja classificado como crime contra a saúde pública, o que levou as pessoas a exercerem essa atividade ilícita é o ganho patrimonial. A finalidade do tráfico é financeira.
Muitos deixaram de roubar e furtar para venderem entorpecentes, pois, o lucro é significativamente maior e o risco menor. O assaltante corre o risco não apenas de ser preso, mas também o de ser morto durante um assalto. Esse risco não existe apenas para as vítimas, mas também para os agressores. O furtador também, guardadas as devidas proporções.
Em suma, tivemos uma mudança significativa em parte da criminalidade porque as drogas se mostraram mais lucrativas do que os assaltos. E apesar de estarmos encarcerando traficantes faz muitos anos, e em número cada vez maior, ainda assim, a venda de drogas somente cresceu nesse período.
Não é por acaso que os tribunais superiores, ouvindo os reclamos dos governantes, têm procurado reduzir as hipóteses de prisão em crimes envolvendo entorpecentes. Só não enxerga o movimento quem não se dá ao trabalho de observar o sistema jurídico por inteiro. Enquanto as polícias trabalham encarcerando traficantes, com o respaldo das instâncias inferiores, os tribunais superiores tentam a todo custo aliviar os presídios. A jurisprudência do STF admitiu inúmeros benefícios para traficantes, os quais eram inconcebíveis na ideia original de guerra às drogas. Liberdade provisória para responder ao processo, penas alternativas para pequenos traficantes, e até o afastamento da classificação como crime hediondo, foram alternativas engendradas no claro intuito de obstar o crescimento explosivo das prisões.
Que os estabelecimentos prisionais são depósitos de barris de pólvora prontos para a explosão, isso não resta dúvida. Quanto menor for o paiol, mais fácil o controle e menor o risco.
Mas o que os acordos de não persecução penal têm a ver com a história recente dos presídios? Simples, a busca desenfreada por alternativas que permitam reprimir os comportamentos desviantes, sem necessariamente ter de recorrer a pena de prisão. Os acordos não permitem a imposição desse tipo de pena (art.28-A do CPP); forçam os gestores públicos e em especial o Ministério Público a desenvolver uma nova forma de combate a certos segmentos da criminalidade. Força o MP a criar estratégias de ação. A legislação define as balizas, o Congresso Nacional fixou os parâmetros. Agora, cabe ao Ministério Público, sob a supervisão do Judiciário e a fiscalização da Advocacia, estabelecer as melhores formas de reprimir os delitos com o menor custo social possível, utilizando alternativas que consigam obter resultados satisfatórios. É um grande desafio.
O Ministério Público assumiu a responsabilidade de encontrar alternativas para o problema carcerário quando o CNMP antecipou a possibilidade de acordos através da Resolução 181 de 2017, antes que o Congresso Nacional houvesse autorizado. Foi uma atitude de vanguarda e de coragem, sujeita a críticas pelo inusitado da situação, mas logo resolvida com o advento da mudança na legislação (Lei 13.964 de 2019).
Cabe a Instituição apresentar resultados concretos nessa nova linha de ação, a qual exige mudança cultural de muitos de seus membros e da própria coletividade. O Mundo moderno é líquido, se move em velocidade outrora inimaginável, e exige novas respostas para antigos desafios. A sociedade não estará isenta de participar desse debate que interessa a toda a coletividade. Um novo instrumento para um novo tempo. Uma ferramenta poderosa que pode transformar a história da Justiça Criminal, levando-a assumir um compromisso mais condizente com os direitos humanos assegurados na Constituição, mas o desafio é fazê-lo sem perda de eficiência, ao contrário, com aperfeiçoamento e melhoria na segurança da população e na construção de uma sociedade mais pacífica, menos agressiva e conflituosa.
O futuro dirá para onde caminhamos, o instituto ainda é novo no sistema jurídico do país, apesar do Juizado de Pequenas Causas já vigorar a mais tempo, mas os acordos têm abrangência mais ampla, o que implica em novos desafios. Bem utilizado poderá vir a transformar a Justiça Criminal em mais consensual e mais justa; mas dependerá muito dos operadores e usuários do sistema, de todos eles. Observação: os acordos não se aplicam aos crimes violentos, mas podem ser utilizados em crimes contra o patrimônio.
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