Andei falando aqui sobre a liberdade e seus limites, as tensões entre liberdade individual e coletiva e a institucionalização da vida social, da democracia e da civilização como fator limitador inevitável da noção de liberdade individual absoluta.
Mas em um segmento específico da vida social sempre tive um olhar anarquista, no exato sentido da ausência do Estado: na cultura e nas artes. Sempre cultivei um olhar de que nas manifestações artísticas deveria prevalecer a liberdade absoluta, radical, ilimitada, sem restrições e intervenções estatais.
Só assim poderiam florescer a diversidade e a riqueza cultural. Do rigor de um João Cabral de Melo Neto ao experimentalismo da poesia concreta dos irmãos Campos. Do realismo social de Bertolt Brecht ao teatro de absurdo de Arrabal, Ionesco e Beckett. Do vanguardismo russo de Serguei Eisenstein à genialidade de Felini e Glauber Rocha.
Da riqueza melódica da música clássica às inovações de Hermeto, ao minimalismo de Philip Glass, passando pelos Beatles, o rock e o samba. Da perfeição anatômica das esculturas de Michelangelo e Rodin às abstrações de Amilcar de Castro, Tunga ou Hélio Oiticica. Da precisão da Monalisa de Leonardo da Vinci às aventuras estéticas Van Gogh, Picasso, Dali ou Pollock.
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Minha geração, no Brasil, sempre associou arte e política. Não no sentido do dirigismo político da estética, mas da liberdade de criação, do humanismo e da diversidade. Na música, fomos brindados com uma geração de ouro que, entre outros, nos permitiu construir a trilha sonora de nossas vidas a partir de Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Hermeto Paschoal, Os Mutantes, Tim Maia, Jorge Bem, que alimentaram a boa trilha aberta por Tom Jobim, Baden, João Gilberto, Noel, Pixinguinha, Cartola e Luiz Gonzaga.
O controle estatal sobre a cultura, as artes e a estética tem a ver com aspirações totalitaristas. Os dois exemplos mais radicais de tentativa de uniformização cultural se encontram em dois polos extremos: o nazismo e o stalinismo. O realismo socialista, linguagem estética, imposta aos países comunistas de 1930 a 1980, pregava uma arte realista, figurativa e didática para difusão dos “valores socialistas”. Stalin, em pessoa, e não só através de seu comissário para política cultural, Andrei Jdanov, revia romances, poemas e peças teatrais e sugeria mudanças. O realismo socialista até encontrou sofisticação teórica na obra de Lukács, mas o resultado foi um desastre.
A outra foi a experiência nazista, através de Goebbels, ministro de propaganda e esclarecimento popular de Hitler, onde a Câmara de Cultura do Reich buscava uma estética que glorificasse a raça ariana, o Partido Nazista e a Juventude Hitlerista.
Não creio que a “Internacional” ou o “Hino da Juventude Nazista” merecessem ganhar um Festival de Música de Arrastão, A Banda, Disparada, Ponteio, Sinal Fechado, Saveiros ou Sábia.
As tentações totalitárias continuam a pairar sobre o mundo contemporâneo. Mais recentemente surgiu a partir da própria sociedade um movimento cultural perigoso conhecido como “politicamente correto”. As lutas identitárias legítimas e contra todas as formas de discriminação ganham neste movimento um cunho de autoritarismo estético. Nelson Rodrigues, Lamartine Babo, entre outros, seriam “lacrados” pelo “politicamente correto”.
Chico Buarque, nosso maior poeta da MPB, compôs para Nara Leão a obra-prima “Com açúcar e com afeto”. Atendendo a pressões do movimento feminista, o artista decidiu retirar a música de seu repertório, que supostamente carregaria mensagem discriminatória. E Geni, Atrás da Porta, Olhos nos Olhos, A História de Lily Braun, Trocando em Miúdos, e tantas outras? Será que Pedro Pedreiro e Construção carregam uma imagem depreciativa e passiva do operariado? E Sinhá retrataria a figura de um escravo negro submisso e resignado? Será que devemos ter músicas didáticas e instrutivas como no realismo socialista ou na estética nazista?
Me perdoe, meu ídolo musical. Vou continuar ouvindo “Com açúcar e com afeto”. Viva a liberdade!
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