Poder de todos implica que todos exerçam o poder. Que todos exerçam o poder implica que todos possam exercer o poder. A lógica aponta o que o mundo real escancara: a imersão plena na democracia pela vida do exercício do poder de cada cidadão (participação real) é impossível em sociedades muito desiguais. Fraturas econômicas convertem-se em abismos políticos.
Novamente, trata-se aqui de uma preocupação antiga. Platão e Aristóteles abordaram o assunto, destacando o fato de a cidade ser dividida em duas: uma cidade dos ricos e uma cidade dos pobres. De fato, nos tempos da Grécia clássica, mas também em épocas mais recentes, no início da modernidade, houve episódios de revoltas sangrentas por parte de grupos populacionais ameaçados de morte por inanição. Há inclusive uma teoria de que três dias de fome generalizada são suficientes para derrubar qualquer governo.
As engenharias de governança política, seja qual for o sistema, buscam legitimar a dominação de poucos sobre muitos. Usualmente, essas construções funcionam e a realidade em todo o mundo mostra exatamente isso: poucos governando a muitos, que aceitam essa governança por crer em algum tipo de legitimidade (seja ele qual for). Mas o risco de revolução sempre está presente.
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Enquanto a revolução não chega, contudo, o fato é que a situação se agudiza. O exercício do poder político requer um minimalismo de poder econômico, que falta à grande maioria da população mundial. O Relatório sobre a Desigualdade Mundial (World Inequality Report) de 2022, publicado pelo World Inequality Lab, coloca o absurdo diante de nossos olhos: os 10% mais ricos da população mundial se apropria de 52% da renda global, enquanto que os 50% mais pobres recebem apenas 8%. Na média, um indivíduo que está entre os 10% mais ricos recebe 122 mil dólares-ano, enquanto outro, que está entre os 50% mais pobres, recebe 3,920 dólares-ano.
Em termos de riqueza, as desigualdades são ainda mais pronunciadas. A metade mais pobre da população global detém apenas 2% do total. Os 10% mais ricos detém 76%. Ou seja: uns não têm nada, enquanto outros têm tudo – frase infelizmente não hiperbólica. E para profunda tristeza e consternação, de quem ainda dispõe dos receptores cerebrais corretos para esses sentimentos, o Brasil nesse campo se destaca. Os 50% mais pobres, em nosso país, recebem 10,1% da renda e detém menos de 1% da riqueza. Os 10% mais ricos recebem 58,6% da renda e detém 79,8% da riqueza. E no topo extremo, o 1% mais rico recebe 26,6% da renda e detém 48,9% da riqueza. Repetindo: 1% das pessoas detém quase a metade de toda a riqueza existente no Brasil.
Qual a condição das brasileiras e dos brasileiros que estão entre os 50% mais pobres de exercerem seu poder cidadão? Se pensarmos em termos da pirâmide de Maslow, diríamos que essas pessoas lutam todos os dias para assegurar o primeiro nível da pirâmide – as necessidades de sobrevivência, ou higiênicas. E é uma luta tão cruel quanto a luta de nossos antepassados pré-históricos fugindo dos leões. Todos os dias se lançavam à savana para caçar o sustento, correndo o risco de virarem sustento de feras. Brasileiras e brasileiros se lançam todos os dias nessas selvas de pedra, cidadãos-descartáveis, sombras vivas, cuja passagem desta para a melhor não será notada por ninguém (e muitas vezes chancelada pelo Estado que pouco se preocupa em investigar o seu fim). Qual o poder político dessas pessoas? Nenhum. Carrearão seus votos a quem conseguir convencê-los de que vai ajudar com uma cesta básica, poupando pelo menos um dia de corre na selva.
Uma democracia representativa legitimamente apoiada por seus cidadãos tem como tarefa permanente promover a integração dessas pessoas. Seja por meio de mudanças paradigmáticas no design das políticas sociais, seja na valorização do salário mínimo, seja no provimento universal e de qualidade de educação e saúde. Democracias fortes devem sempre atuar no limiar crítico da produção de mudanças nessa realidade.
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