Deixem-se aqui de lado as qualidades e os defeitos. Os acordos e as circunstâncias políticas. Tudo aquilo que foi e continuará sendo a massa com a qual foram e serão forjados os artigos publicados neste espaço. Sempre com o esforço de trabalhar com equilíbrio e sem partidarismos. O que Dilma Rousseff representa nos termos dos atuais arranjos políticos brasileiros e como ela chegou ao posto que irá ocupar a partir de 1º de janeiro não é tema desta coluna esta semana.
Deixado isso tudo de lado, preciso dizer que a eleição de uma mulher como presidente (ou presidenta, como ela prefere) me enche muito de orgulho. Porque é consequência de algo iniciado há 81 anos, quando minha bisavó, Alzira Soriano, foi eleita prefeita de Lajes, no Rio Grande do Norte.
A história da saga de minha bisavó marcou de uma forma incrível minha família. Durante muito tempo, fomos um matriarcado, de mulheres fortes mandando e definindo os destinos de suas famílias. Se não continuamos assim foi por conta de gerações posteriores quase que somente masculinas. Os Soriano – que depois viraram Lago, quando minha avó, Ismênia, casou-se com o dentista Ruy Lago e teve três filhos, José, meu pai, e seus dois irmãos, Thomaz e Ruy – viraram homens diferentes. Temos um profundo respeito pelas mulheres e conseguimos vê-las de fato como iguais. Não como seres mais frágeis. Ou muito menos com aquelas ideias bocós antigas, de responsáveis pelo pecado original, etc. Pelo contrário, elas nos parecem até superiores, porque vovó Alzira é uma espécie de super-heroína familiar, citada a todo momento, referência sempre.
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Trata-se de uma mulher que ficou viúva aos 22 anos. Seu marido, Thomaz Soriano de Souza, morreu de gripe espanhola em 1919. Minha bisavó teve que se virar sozinha, com duas filhas nascidas e mais uma na barriga. Assim forjou-se aquela que, em 1929, se tornaria a primeira prefeita da América Latina, motivo na época de matéria até no New York Times.
Vovó Alzira é mais um daqueles casos que o destino forja. Se não tivesse ficado viúva tão cedo, certamente não teria que, tão cedo, administrar uma fazenda em pleno sertão nordestino, a Fazenda Primavera. Não teria que mandar em homens, em rudes vaqueiros. Não chamaria a atenção do movimento feminista do Rio Grande do Norte, que não a escolheria como opção de mulher para disputar as eleições para prefeito. É provável que ela ficasse na condição de dona-de-casa, cuidando das suas filhas. Mas o destino não quis assim, e vovó Alzira foi fazer história.
Não que já não houvesse o gosto pela política na família. O pai de minha bisavó, Miguel Teixeira de Vasconcelos, já era um dos líderes políticos da região. Mas meu bisavô era nome apontado como provável futuro governador do Rio Grande do Norte. Ou seja: se não tivesse morrido, a primazia política era dele. Até porque era um mundo majoritariamente masculino. Em 1929, quando vovó Alzira foi eleita, as mulheres no Brasil ainda nem votavam. Isso só acontecia no Rio Grande do Norte, um estado pioneiro na luta pela emancipação feminina.
Vovó teve que ser dura. Ouviu muitas piadas e xingamentos. Os homens contrapunham a ideia de “homem público”, ligada ao político, a “mulher pública”, para insinuar que ela era uma prostituta por fazer política, por administrar uma cidade. A necessidade de ter de responder a esse tipo de coisa fez de vovó, dizem, uma mulher dura, que não levava desaforo para casa. O seu secretariado no município era composto apenas por homens. Uma mulher baixinha mandava neles. Não cheguei a conhecê-la. Conheci minha avó e suas irmãs, minhas tias-avós, que não eram diferentes. Ai de quem se atrevesse a tratá-las como ‘mulherzinhas”, no sentido pejorativo do termo.
Eram admiráveis na inteligência rara e no conhecimento político, mulheres atualizadas, sempre antenadas, profundas. Meu pai era absolutamente fascinado pela imagem da avó. Enquanto meu pai foi vivo, vovó Alzira era citada praticamente todos os dias. A Fazenda Primavera, que ela administrava, era o local sempre das férias do meu pai. Ele, um Pedrinho, e a fazenda, o seu “Sítio do Pica-pau Amarelo”.
A aventura de minha bisavó como prefeita durou apenas um ano. Em 1930, houve a revolução e ela deixou o cargo com a ascensão de Getúlio Vargas. Mais tarde, foi duas vezes vereadora. Chegou a presidir a Câmara e a liderar a UDN no município.
Hoje, a casa em que minha bisavó nasceu, em Jardim de Angicos, no sertão do Rio Grande do Norte, é um bem cuidado museu que guarda a memória da sua imensa aventura. Neste momento em que o Brasil elege a sua primeira presidente, nem todo mundo se lembrou de vovó Alzira. Eu tenho um espaço semanal. E me senti na obrigação de lembrá-la. Gostaria muito de ver Dilma Rousseff nos espaços daquela casinha de três quartos em Jardim de Angicos, prestando uma homenagem merecida à minha bisavó. Dilma não seria presidente Dilma sem ela.
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