O Brasil é uma “república democrática” a ser estudada. Quando, no início da década de 80, nos livramos, enfim, de mais de 20 anos de ditadura militar e passamos por um processo de redemocratização, o que se pretendia era conceber um sistema pluripartidário reconhecendo que as visões políticas iam além do vermelho e do azul e que desse oportunidade para as múltiplas visões políticas encontrarem casa e guarida.
Entretanto, definitivamente, não foi isso que aconteceu. E, hoje, passamos por um curioso momento no qual quanto mais pretendemos melhorar a democracia, mais pioramos a sua qualidade. Ao contrário do que se almejava com a Constituição de 1988, criamos um sistema de colonização da política pelas oligarquias nacionais (como colonizado é, de resto, todos os nossos sistemas), com a fundação dos ora 33 partidos, que, em sua maioria, são completamente desprovidos de ligação com o projeto de país que se queria.
Para além das caixas ideológicas que abarcassem uma miríade razoável de visões – como a esquerda trabalhista, a esquerda liberal, a social democracia, os verdes, os pós-modernos, a direita liberal, a direita conservadora e até a anacrônica monarquia (vá lá) -, a realidade política do Brasil mostrou, nos anos após a consolidação do processo democrático, um espectro partidário completamente desassociado da representação popular para o qual existe em uma democracia dita representativa. O que temos, de fato, são 33 partidos a serviço de lideranças políticas oligárquicas e que representam menos de 65% da população, segundo pesquisa do Datafolha em 2019.
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Concluímos, enfim, que íamos mal e que era preciso uma medida para reparar esse divórcio. E qual foi a nossa solução? Olhar para a quantidade esdrúxula de partidos e não para a questão de fundo: 65% da população não se vê representada por nenhum! Não é uma questão quantitativa, apenas. Embora, certamente, a questão quantitativa seja sintoma do problema. A questão é qualitativa.
Se quantitativa fosse, a pesquisa do Datafolha estaria invertida: 65% dos partidos não representariam ninguém. Mas não é esse o resultado. De fato, apenas 9 dos 33 partidos (Democracia Cristã, PCB, PCO, PMB, PMN, PRTB, PSTU, Agir e UP), cerca de 27%, não têm representação no Congresso Nacional e, de fato, não representam ninguém. Mas o resto, bem ou mal, têm. E nossas medidas não foram para melhorar a qualidade dos que têm, de modo que falem efetivamente com a população que não se diz representada.
Com efeito, nas múltiplas metodologias para classificação das agremiações por espectro político, publicadas em anos distintos, parece haver uma brutal dificuldade em identificar para quem, de fato, falam os partidos. O PSDB, por exemplo, tem sido classificado como direita conservadora, pela BBC Brasil (2017); centro-direita, pelo Cláudio Couto do Estadão (2018); centro-esquerda liberal pela Folha de S. Paulo (2018); e de centro, pelo Congresso em Foco (2019). O MDB, por sua vez, é entendido como de direita conservadora, pela BBC Brasil; centro-direita, pelo Cláudio Couto do Estadão; centro-esquerda liberal pela Folha de S.Paulo; e de centro, pelo Congresso em Foco.
E se com os partidos de esquerda a coisa começa melhor (são sempre de esquerda, pelo menos), a coisa não é tão tranquila também. O Psol e o PT, que se dizem socialistas nos estatutos, são classificados como de esquerda pelo Globo; de esquerda progressista, pela BBC Brasil; esquerda radical e esquerda, respectivamente, pelo Cláudio Couto do Estadão; esquerda trabalhista pela Folha de S.Paulo; e de esquerda, pelo Congresso em Foco.
Pelo que se vê, estamos TODOS, claramente, falhando em conversar com a população, que não consegue nos compreender, tamanha a flexibilidade das correntes internas, das configurações locais, das ginásticas programáticas para alcançar o complexo sistema eleitoral onde realmente figura o problema.
Porque é nas pseudo soluções quantitativas que encontramos para desbaratar nosso divórcio entre sociedade e representantes políticos que a confusão se aprofunda. Quando pretendemos colocar cláusulas de barreira e fazemos a divisão de recursos por representação consolidada, estamos oficializando a oligopolização da política e ampliando a confusão programática interna, premiando oligarcas eficientes em usar puxadores de votos já consolidados pela política com práticas nem sempre republicanas, em benefício da própria manutenção de poder.
É a partir disso que um partido rico por sua representação calcada em uma campanha obscura, com uso de figuras nefastas como Steve Bannon e vazio em propostas, como o PSL – que se diz social liberalista (?), mas é classificado, escalafobeticamente, como centro, direita conservadora, extrema-direita, centro fisiológico e direita pelos citados veículos -, se une a um partido como o DEM, cheio de lideranças sem liderados e que se diz liberal social, sendo classificado como centro, direita conservadora, direita, “direita que virou centro” e direita.
É assim também que os debates sobre federação e formação de chapas e propostas para a próxima eleição está capturado pela manutenção e sobrevivência dessas estruturas: extremamente corrompidas, elas não nos dão chance alguma de, efetivamente, debatermos projetos de país, de representação e de abertura democrática para a participação popular.
É por avaliações equivocadas como essas que democracias já nascem natimortas.
Veja a distribuição ideológica dos partidos feita pelo Congresso em Foco
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