“As coisas começaram a evoluir de uma forma muito estranha”. Assim começa o depoimento da enfermeira Graciete Mouzinho, que enfrentou, na rede pública de saúde de Manaus (AM), o drama da pandemia de covid-19. Manaus foi o centro da maior tragédia brasileira da pandemia: em apenas dois dias, mais de 30 pessoas morreram asfixiadas porque a cidade, por falha na logística do governo, ficou sem oxigênio para atender aos pacientes infectados. O relato de Graciete contrasta com as seguidas falas do presidente Jair Bolsonaro, que tenta agora a reeleição pelo PL, minimizando a pandemia, que no Brasil já vitimou mais de 700 mil pessoas.
O depoimento da enfermeira de Manaus faz parte da série Behind the Mask (Atrás da Máscara), produzida pela Internacional de Serviços Públicos (ISP), que colheu relatos de profissionais de saúde diretamente envolvidos com o combate à covid-19 em quatro países: além do Brasil, Zimbábue, Paquistão e Tunísia.
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A série é parte dos esforços do ISP para mapear como a covid-19 impactou a vida dos profissionais de saúde nesses países. O resultado final desse esforço é uma pesquisa, à qual o Congresso em Foco teve acesso que dimensiona esse impacto. De acordo com a pesquisa, entre março de 2020 e dezembro de 2021, morreram no Brasil mais de 4,5 mil profissionais da saúde pública e privada. Oito a cada dez entre os que morreram salvando vidas na pandemia eram mulheres. O levantamento, que cruza diversas fontes oficiais, foi feito especialmente para ISP pelo estúdio de inteligência de dados Lagom Data.
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Além do Zimbábue, Paquistão e Tunísia, o Brasil foi escolhido pela abordagem negacionista do governo Bolsonaro. A ISP atua com o sistema das Nações Unidas em parcerias com a sociedade civil.
“Faltaram equipamentos de proteção, oxigênio, vacinas, medicamentos, sobraram mensagens falsas e desaforadas do governo sobre a Covid-19, chocando o mundo”, avalia Rosa Pavanelli, secretária-geral da ISP, cuja sede fica em Genebra na Suíça e integra a Comissão de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU sobre Emprego em Saúde e Crescimento Econômico.
PublicidadeNa linha de frente
Os dados revelam que as mortes entre os profissionais brasileiros de saúde se avolumaram mais rapidamente do que o observado na população geral, especialmente nos meses em que faltaram equipamentos de proteção individual para esses trabalhadores. E o impacto da doença foi maior nas ocupações com menores salários e mais próximas à linha de frente: auxiliares e técnicos de enfermagem morreram proporcionalmente mais do que enfermeiros, e estes proporcionalmente mais do que os médicos.
Quanto mais próximos aos pacientes esses profissionais trabalhavam, mais morriam: 70% dos mortos trabalhavam como técnicos e auxiliares de enfermagem; em seguida vieram os enfermeiros (25%) e por último os médicos (5%). Para se ter uma ideia, foram 1.184 enfermeiros mortos, o que pode ter impactado diretamente o atendimento de 21.300 pacientes.
Pelas regras do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), cada enfermeiro atende até 18 pacientes e cada atendente, nove doentes. Em Manaus, por exemplo, cada enfermeiro atendeu 40 pacientes com o auxílio de dois atendentes. Dois terços desses profissionais brasileiros provavelmente não tinham contrato formal de trabalho, segundo cruzamento entre os dados do Ministério da Saúde e informações sobre desligamentos por morte no Novo Caged.
Ainda segundo a pesquisa, nos primeiros meses da pandemia, a curva do excesso de desligamentos por morte entre os profissionais da saúde era mais elevada do que a da totalidade das ocupações no Brasil. Ou seja, os profissionais da saúde morriam proporcionalmente mais. Em maio de 2020, as mortes excedentes chegaram ao dobro da média anterior.
Mortes poderiam ter sido evitadas
Da mesma forma, quando finalmente o Brasil avançou na vacinação prioritária dos profissionais de saúde, a mortalidade entre eles caiu mais rápido do que na população em geral, que demorou mais meses para ser vacinada. Mortes poderiam ter sido evitadas se houvesse zelo ou empenho governamental, segundo a análise da ISP.
Em março de 2021, com uma confluência de fatores que iam da pressão pela volta precoce das atividades presenciais à lentidão do governo em avançar com a vacinação, as mortes de Covid explodiram no Brasil inteiro. Os profissionais da saúde sentiram esse impacto também, embora por menos tempo: o avanço da vacinação prioritária abreviou no setor o pior pico prolongado de mortes que já se viu no Brasil durante o período pandêmico.
Behind the Mask
Além da apresentação dessa pesquisa, a ISP tem lançado, desde junho, uma campanha documental sobre os desmandos dos governos nos momentos críticos de um dos maiores colapsos sanitários e hospitalares da história.
Dentre as ações da campanha destaca-se Behind The Mask, Por Detrás da Máscara no Brasil. A série documental interativa online apresenta, nos quatro países, o impacto que as decisões políticas e a corrupção tiveram em sua capacidade de fornecer serviços aos pacientes sob seus cuidados, a partir de um profissional de saúde. Centrada na rotina de quatro profissionais de saúde, a série traz personagens do Zimbábue, Paquistão, Brasil e Tunísia.
No episódio brasileiro, o segundo da série, a enfermeira Graciete Mouzinho é a personagem central. Graciete, em meio ao caos da pandemia, coleta depoimentos de trabalhadores para construir um processo legal por cumplicidade e corrupção contra o governo Bolsonaro, circunstância que custou a vida de cidadãos.
Piso da enfermagem
A ISP defende a implementação do Piso Salarial Nacional da Enfermagem, Lei 14.434/22, aprovada no Congresso Nacional, suspensa a pedido do setor. Para a organização, o valor sugerido (R$ 4,7 mil ; R$ 3,3 mil técnicos de enfermagem, e R$ 2,7 mil para auxiliares de enfermagem e parteiras), reperesentaria o mínimo de dignidade para os profissionais.
“A ISP lamenta que o Brasil, com o recorde de mortos e sequelados do pelotão de frente que o defendeu contra a covid, siga desrespeitando decisões tomadas pelo Congresso Nacional. É obrigação do Estado de Direito e suas instituições, Judiciário, Legislativo e Executivo, definirem as fontes de custeio e implementar a lei, avalia a organização internacional”, diz a instituição.
Veja abaixo a íntegra da pesquisa:
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